sexta-feira, 29 de setembro de 2017

A FILOSOFIA UBUNTU E CONCEPÇÃO OPERACIONAL DE JUSTIÇA

Introdução  
O tema do trabalho “Ubuntu e a Concepção Operacional da Justiça” aparece como uma tentativa de busca duma concepção originalmente africana da justiça. Por concepção originalmente africana da justiça entendemos àquela baseada na experiência cultural dos povos africanos, e o ubuntu é o que de comum as diversas culturas africanas possuem.
Desta forma, o artigo procura, de forma geral, analisar conceptualmente o ubuntu nas suas diversas formas de manifestação com vista à busca do seu conceito operativo de justiça. Dado que o ubuntu é uma forma de vida africana na qual acredita-se que a pessoa para ser pessoa depende de outras pessoas (umuntu ngumuntu ngabantu), a maneira como essa dependência se manifesta no âmbito da justiça torna-se pertinente para repensarmos os sistemas de justiça vigentes no mundo de globalização que atravessamos a partir da realidade histórica e sócio-cultural de África. Especificamente, o objectivo é identificar as origens do conceito ubuntu; explicar os seus diversos significados e, por fim, inferir, a partir de certos pensadores africanos, o conceito operativo de justiça em ubuntu.

O trabalho resulta da pesquisa recomendada no Seminário IV do Curso de Mestrado em Educação/Ensino de Filosofia, descrito com o título: Ubuntu: Conceito Operativo de Justiça com vista a avaliação do mestrando neste Módulo. O tema é relevante na medida em que poderá dar um contributo significativo para o aperfeiçoamento da concepção de justiça num mundo globalizado em que o que mais se reclama é esta virtude (a justiça), em virtude de várias turbulências, tais como, criminalidade, guerras, escravatura sexual, tráfico de órgãos humanos, corrupção, etnocídio, etc. Esperamos, também, com este trabalho podermos dar um grande contributo para a compreensão do conceito de ubuntu, no geral, e da sua concepção operativa da justiça, em particular, dado que no nosso país é escasso o material que versa sobre este assunto por ser um tema abordado maioritariamente pelos países africanos anglófonos e não lusófonos, como é o caso do nosso Moçambique.

No que tange ao procedimento metodológico, o trabalho resulta da revisão bibliográfica que consistiu na busca e leitura de obras que versam sobre o ubuntu, ou no que dá no mesmo, o ubuntuismo, tendo tido maior enfoque nas obras de Augustine Shutte e José P. Castiano. Operacionalmente, recorreu-se a análise conceptual que consistiu na desconstrução e desdobramento do conceito ubuntu com vista a compreensão ampla e profunda do mesmo.
O trabalho está dividido em dois capítulos, cujo primeiro aborda o conceito de ubuntu partindo do seu significado etimológico para o seu significado político como um pontapé de entrada ao conceito operativo de justiça, já no segundo capítulo. Por fim, encontramos a conclusão, onde fazemos uma análise crítica sobre o conceito operativo de justiça em ubuntu.


DA CONCEPÇÃO ETIMOLÓGICA AO SIGNIFICADO POLÍTICO DE UBUNTU

No presente capítulo, procuramos explicar as origens do conceito ubuntu e as suas diversas formas de manifestação com vista à maior compreensão do mesmo.

1.1 Conceito de ubuntu
Segundo Augustine Shutte o conceito de Ubuntu foi desenvolvido há seculos na cultura tradicional africana. Essa cultura era pré-letrada, pré-científica e pré-industrial. Contudo, Ubuntu era expresso nas cancões e estórias, nos costumes e instituições das pessoas (Shutte, 2001: 9); para ele a palavra Ubuntu significa humanidade. A humanidade neste ponto é tomada no sentido de “ser ser humano”, isto é, a qualidade necessária para que uma pessoa seja considerada um ser humano (Ibidem: 2). A concepção africana da humanidade não é materialista. O ser humano não pode ser compreendido como se fosse um objecto, pois para além da parte material é também composto pela parte espiritual. Em África, o conceito de humanidade observa ambas as dimensões espiritual e material, e particularmente, como energia vivente em relação com as outras energias viventes (o que Tempels chamou de força vital).

A concepção africana da humanidade também não é individualista, como o são o liberalismo e o capitalismo, tentando proteger a liberdade do indivíduo separando-o da comunidade. Mas também não é colectivista como o são o comunismo, tornando o individuo como parte da comunidade apenas. Na concepção africana a pessoa depende das outras pessoas para ser pessoa (Umuntu ngumuntu ngabantu). É aqui onde se encontra o sentido de Ubuntu. É pertencendo à comunidade que nos tornamos nós mesmos. A comunidade não se opõe ao indivíduo, não o engole, ela o capacita a se tornar o único centro da vida comum (Shutte, 2001: 9).

1.1 O sentido ontológico do Ubuntu
Na vertente metafisica, segundo Ramose citado por Castiano, a palavra Ubuntu deriva da língua Zulu e é composta por duas palavras, o prefixo ubu e  a raiz ntu. O prefixo ubu exprime a generalidade do ser, o ser antes da sua manifestação, determinação ou especificação. O ubu determina-se ou deixa-se determinar no ntu (manifestação do ser). Ontologicamente não há nenhuma separação entre o ubu (ser) e ntu, o que existe é uma separação linguística dos termos(Castiano, 2010: 156).

Castiano diz que ubuntu é a categoria epistemológica e ontológica fundamental do pensamento dos povos bantu” (Idem).

O ubuntu tem como suporte de significação o umuntu (a determinação ou concretização) e o umuntu só pode ser reconhecido como tal se tiver o ubuntu. O umuntu é um ser determinado, isto é, o ser humano, ser de acção, enquanto um ser politico, religioso e sobretudo entidade moral (idem).

Segundo Shutte, a tradição africana vê o universo como um universo de interacção de forças, no qual todos os seres neles existentes, animados e inanimados (plantas, animais, pedras, as pessoas, etc) são forças interagindo uma a outra. Estas forças não são entendidas no sentido materialista, como simplesmente força física, mas também como presentes em nossas emoções e ideias. Contudo, elas não são nem simplesmente espirituais. Estas estão também presentes nos nossos músculos e sangue (Shutte, 2001: 21-22).

Não sendo materiais, nem puramente espirituais, as forças que compõem o ser são vistas como vitais, energia vivente, forças da vida. As pedras também têm força de vida como os animais, a diferença consiste apenas na quantidade de força que uns possuem em relação aos outros; por exemplo, os animais possuem maior força que as pedras, e os homens possuem maior força que os animais. Portanto, o universo é visto como um sistema hierárquico de forças, no qual Deus representa a força criadora e fonte de todas as forças, de seguida encontramos os antepassados que tem maior força que os homens viventes, e estes que os animais, e os animais que as plantas, e as plantas que as pedras (Idem).

Esta forma de conceber o universo é que vai influenciar a concepção ubuntuista da pessoa e da ética porquanto determina a maneira como nos vimos a nós mesmos. Se o universo é uma hierarquia interactiva de forças, então o nosso “eu” resulta e é expressão de todas as forças que agem sobre ele. A pessoa é a soma total dessas forças interactivas. Entretanto, Shutte afirma que temos que aprender a ver a nós mesmos a partir de fora, na nossa aparência, os nossos actos e relações, e no ambiente que nos cerca, pois que é a manifestação das forças vitais que nos torna sermos o que somos (ibidem: 23).

Desta concepção metafisica do ser, brota a concepção africana da pessoa: a pessoa só é pessoa somente em relação com as outras pessoas.

Setiloane citado por Shutte, afirma que a essência do ser é participação na qual os homens estão interligados uns aos outros. O ser humano não é apenas uma força vital, mas uma força vital em participação (Setiloane apud Shutte, 2001: 23).

Em suma, a pessoa em África não apenas é um ser com os outros (Heidegger), mas também a partir dos outros, pois que são os outros que reflectem a sua entidade, identidade e personalidade.

1.2 O sentido epistemológico do Ubuntu
A epistemologia africana difere em alguns aspectos da epistemologia ocidental. A epistemologia ocidental acredita que a epistemologia é ciência que estuda a apropriação das qualidades do objecto pelo pensamento. Isto pressupõe a existência do objecto a ser conhecido e do sujeito que conhece e, portanto, a existência da experiência ou sensação e da razão como faculdades do conhecimento científico. Ora, segundo Kwame Gyekye, a epistemologia africana não desconhece o conhecimento sensitivo nem racional e acredita também nas ideias inatas. Estas conclusões, Gyekye evidencia através de provérbios do seu povo Akan. Contudo, para além do conhecimento racional e experimental, afirma que o que essencialmente caracteriza a epistemologia africana é a mediunidade, adivinhação, e feitiçaria. Estas três formas de adquirir o conhecimento diferem quanto à forma se comparadas em África e outros continentes. Em África são modos físicos e vulgares de conhecer que podem ser encontradas em todas as comunidades. Acredita-se que estas formas de saber são inatas e não precisam da experiência para a sua aquisição. Porém, são transmitidas por herança, ou melhor, incarnação do espirito médium ou do feiticeiro aos seus descendentes.

Segundo Ramose interpretado por Castiano, na vertente epistemológica, o ubu tem condição da sua existência o umuntu. Portanto, o termo umuntu está estritamente ligado ao ubuntu, para expressar as condições da existência do ubuntu. Isto é, toda a acção e comportamento do ser humano é uma tentativa de relevar e revelar o ubuntu (Ramose apud Castiano, 2010: 157).

É a partir desta ideia que, segundo Castiano, se pode compreender a expressão “Eu sou porque tu és” que significa que a nossa existência como indivíduos reflecte o ser da nossa comunidade, ou melhor, dos membros da nossa comunidade. A nossa humanidade só se realiza e manifesta-se no reconhecimento da humanidade dos outros. “Portanto, um comportamento humano é a base das relações entre os homens” (Castiano, 2010: 158).

1.3 O sentido ético de Ubuntu 
A ideia da liberdade na Europa significa fazer escolhas deliberadas, ser autodeterminados, ser completamente livres de influências dos outros que de nós mesmos. Esta ideia de liberdade tem sua origem na concepção grega do homem como um animal racional, pois sendo o homem animal racional é livre porquanto tem a capacidade escolher e decidir que vida deseja levar.

A concepção do homem como um ser comunitário em África representa a essência do conceito de humanidade. Esta concepção entende-se na máxima umuntu ngumuntu ngabantu (a pessoa é pessoas através de outras pessoas). O que significa que a pessoa depende das relações pessoais para exercitar, desenvolver e cumprir a sua humanidade.
Na vertente ética, o eu sou porque tu és[1], exprime o modo como os homens se comportam na sociedade, aliás que as pessoas devem se comportar humanamente, o que implica respeitar o outro, ser clemente, paciente, ter um comportamento são e impecável, ser altruísta e solidário. No ubuntu, quando se diz “aquele é o homem” pretende-se dizer que é eticamente são, que respeita a humanidade dos outros, que escuta os outros, “é paciente, cultiva o perdão e a compreensão entre os homens” (Idem).

O ubuntuismo advoga que não basta ser ser humano, é preciso manifestar essa humanidade exprimindo as qualidades humanas aos outros. O ser humano deve manifestar o seu ubuntu.

Segundo Brodryk citado por Castiano existem valores fundamentais do ubuntuismo e outros associados. Os valores fundamentais são o humanismo (valores associados: calor, tolerância, compreensão, paz, humanidade), carinho (valores associados: oferta incondicional, redistribuição, abertura, atitude de “mão aberta”) respeito (valores associados: cometimento, dignidade, obediência, ordem, predisposição para cumprir as normas sociais) e compaixão (valores associados: amor, coesão, informalidade, perdão, espontaneidade) (Brodryk apud Castiano, 2010: 165).

Um outro valor cultivado no Ubuntu é o perdão, o que pressupõe o exercício de simpatia e empatia para o outro, o perdão é um dom divino e tem como fundamento a imperfeição humana: temos que perdoar porque todos nós cometemos erros, todavia temos que aprender com os nossos erros de modo a não repeti-los (Idem).  É o perdão que constitui o valor de justiça fundamental em na filosofia ubuntu.

1.4  O sentido político do Ubuntu
Segundo Shutte, desde que as pessoas passam a viver em comunidade e essa comunidade se encontra bem unida e organizada, a lei aparece com sua forma mais directa de expressão da vontade social dessa mesma comunidade, e portanto, introdu-la à vida política. A esfera da política é esfera da autoridade e a autoridade tem que existir para garantir o cumprimento das leis (Shutte, 2001: 181).

Na filosofia Ubuntu, a comunidade politica e o governo é expressão natural e essencial da natureza humana. Não é convencional ou, como quer Shutte, artificial. Por sociedade política natural refere-se ao estado político que se origina naturalmente, através dos esforços racionais obscuros, que exprimem uma ordem racional. O corpo político tem carne e sangue, instintos, paixões, reflexos, estruturas psicológicas inconscientes e dinamismo, todos sujeitos a coerção legal, para comandar uma Ideia ou decisões racionais (Idem).

A justiça é a primeira condição existencial desse corpo político, mas a amizade é que é a sua verdadeira fonte e forma de vida. Tem como devoção as relações humanas, de amor mútuo e assim como o senso de justiça de uns para com os outros.

O governo na concepção ubuntu, não é visto numa perspectiva mecanicista, tal como o é um num sistema burocrático mas sim numa perspectiva de relação interpessoal entre os governantes e os governados. Contudo é um relacionamento acompanhado de liberdade e responsabilidade, o que Shutte chamou de princípio subsidiário. A partir de cima para baixo significa, este principio, suportar mas não interferir, a partir de baixo para cima significa obediência e cooperação. Se Ubuntu politicamente significa respeitar a liberdade das pessoas, então necessariamente significa também exigir a sua responsabilidade (Idem).

O Ubuntu advoga que os governantes não devem ser eleitos como políticos mas como pessoas, isto é, através avaliação do seu comportamento e das suas acções na vida quotidiana e não devemos nos deixar convencer por vás retóricas enganadoras. Não devemos escolher um governante que não possamos confiar na vida privada, isto pressupõe o estudo das suas vivências passadas de modo que possamos conhecer o seu carácter. O fim último do governo é a promoção do bem comum para a comunidade (Ibidem: 183).

Castiano afirma que, na vertente politica, o ser ser humano é manifestar ubuntu aos outros ser humanos, respeitando-os, ser paciente, altruísta e solidário, significa que, politicamente, o soberano tem o povo como fonte e justificação da sua acção. O soberano deve ser julgado a partir do seu ubuntu, ou seja, da forma respeitosa, carinhosa, afável e desinteressada como ele trata os seus súbditos (Idem). Isto implica que, no ubuntu não se justifica que o soberano aja de forma autoritária, opressiva e desumana para com os seus súbditos. O ubuntu torna-se a fonte de legislação e governação da polis.

2. UBUNTU E A CONCEPÇÃO DE JUSTIÇA

Neste capítulo, que é o coração do nosso trabalho, inferimos a concepção operacional de justiça em ubuntu a partir de certos pensadores africanos.

2.1 Ubuntu e a concepção operativa de justiça
Segundo Castiano as qualidades éticas defendidas em nome do ubuntu, constituem o alicerce para o princípio de uma nova forma de justiça, da jurisprudência tradicional africana na qual a preocupação central não é a retribuição ou a punição do infractor, mas sim e no espírito ubuntu, curar os males, focalizar as iniquidades, as desigualdades, enfim a restauração (justiça restaurativa) das relações dos valores humanos quebrados. É um tipo de justiça que procura reabilitar a vítima e o culpado; a este último, compreende-se, deveria ser-lhe dada a oportunidade de ser reintegrado na comunidade que vive, com os seus actos bárbaros no passado (Castiano, 2010: 167).

Este tipo de justiça fora aplicado após a queda do sistema segregacionista sul-africano, apartheid, no sentido de buscar-se a reconciliação entre os opressores e os oprimidos. A condição era que os opressores, torturadores confessassem publicamente os seus crimes contra a humanidade e que pedissem perdão. Para tal foi instituída uma comissão da verdade e reconciliação que gerisse esse processo. A razão desse tipo de justiça restaurativa tem a ver com a consciência ubuntu de que o opressor é humano e como tal erra, então precisa de ajuda dos outros para recuperar a sua humanidade perdida.

Ngoenha vê o conceptualizador e executor desse processo Desmond Tutu. Tutu por meio da tradição do antigo testamento de retornar os ofensores à justiça e ao bem comum, construiu o seu pensamento de reconciliação após o sistema de apartheid. Não só, mas também foi inspirado teologicamente pela Black Theologie of Liberation dos EUA percorrida por James Cone.

A justiça restaurativa segundo Tutu citado por Ngoenha significa reparação. Todavia, reconhece-se a diferença entre o conceito de reparação com o da compensação. A diferença consiste em que reparação consiste em reconhecer publicamente os males cometidos através da confissão pública do perpetrador, enquanto compensar consiste na retribuição quantitativa dos males cometidos pelo infractor em benefício da vitima. O que, segundo Ngoenha, este argumento não é convincente para Derrida (Ngoenha e Castiano, 2014: 69-73).

2.2 Ubuntu e a Concepção de justiça no contexto actual (da globalização)
Segundo Nyaumnwe e Mkabela citados por Castiano (2010: 168) o ubuntu tem duas dimensões directivas: uma descrição factual de estar com os outros e um código de conduta que visa conjugar o respeito e a compaixão para com o outro. O maior valor da filosofia moral ubuntu consiste na sua capacidade de criar a cooperação e a unidade entre as pessoas.

Nyaumwe e Mkabela procuram mostrar através da maxima “umuntu ngumuntu ngabantu” que o ubuntu pode resolver os problemas modernos (Idem). Além disso, para além do ubuntu baseado na Ética, propõem um ubuntu baseado na filosofia social, que não se limite no tradicionalismo, mas cujos valores tradicionais sejam incorporados no discurso sobre a África moderna. Para a sua concretização, o primeiro passo, seria que os jovens tenham a oportunidade de apreciar os valores culturais africanos de modo que se sintam encantados, façam as suas escolhas e orientem o seu comportamento com base nesses valores: o humanismo, o colectivismo, a cooperação, o carinho para com o outro e o respeito. Para estes pensadores, os valores democráticos defendidos nos tempos de hoje estão em consonância com os valores e as práticas tradicionais nas comunidades africanas. Estes valores democráticos são: a inclusão, a negociação, a transparência e a tolerância. O exercício da palavra nas comunidades tradicionais promove a capacidade de buscar consensos para decisões colectivas, embora esse consenso não se baseie na maioria como acontece no sistema democrático. O consenso nas comunidades tradicionais africanas visa maior coesão social, daí a importância destes valores para a democracia.

Nyaumwe e Mkabela interpretados por Castiano, “acham que se deve restaurar a filosofia moral ubuntu para mostrar as gerações mais jovens os benefícios do ubuntu por forma a poderem começar a apreciar a contribuição da filosofia moral africana para com a humanidade e misturar estes com os aspectos da cultura ocidental”. Para tal objectivo a educação tem o papel de educar no espirito ubuntu (Nyaumwe e Mkabela apud Castiano, 2010: 171).

Ngoenha (2011), por sua vez, critica a globalização vigente no mundo moderno, fruto do neo-liberalismo que ganha a sua consolidação filosófica com a profecia fukuyamiana do “fim da história”. O “fim da história” significava a “uniformização axiológica e cultural do mundo”. Esta uniformização teria consequências económicas e políticas mundiais, sobretudo, na questão da justiça. E o problema que se deve tentar resolver glocalmente nos dias de hoje em todas as sociedades é a questão da justiça.

Neste sentido, a justiça restaurativa sul-africana aparece como um contributo africano jus-paradigmático no debate de ideias que ultrapassam a dimensão africana, depois dos paradigmas libertários (políticos, filosóficos, culturais e económicos) versados apenas em África. Todavia, Ngoenha levanta questões críticas que precisam ser repensadas no contexto da concepção da justiça ubuntu, todas elas versadas mais ou menos na questão das desigualdades sociais e económicas que esta teoria da justiça não foi capaz de pensar a ultrapassar, porquanto tinha a preocupação a reconciliação apenas e não foi traduzido para um sistema político ético-jurídico.


Conclusão

Ubuntu: conceito operacional de justiça ou cobardia?
A concepção restaurativa da justiça ubuntu advoga que a justiça não será punitiva mas sim de reparação, na qual o perpetrador dos crimes contra a humanidade ou qualquer ofensa é levado a confessar publicamente os seus pecados contra a humanidade diante da vítima como meio de adquirir o perdão e ser reintegrado na comunidade e, no entanto, recuperar a sua humanidade que se resume no saber ser com os outros. Este processo foi possível através da instituição de uma comissão da verdade e de reconciliação na África do Sul pós-apartheid.
Para mim, esta teoria ou prática da justiça não foi vista de forma geral do que deve ser uma teoria da justiça, pois ela só contemplou os crimes políticos que geralmente são guiados pela lei de amnistia, lei na qual os crimes políticos são susceptíveis de perdão. A grande preocupação da justiça ubuntu é a reconciliação. Mas a vontade de reconciliação sul-africana é por mim vista como um acto de cobardia ou medo da liberdade, dado que esta implica a responsabilidade de conduzir as suas vidas e destinos. Depois de todas as barbaridades cometidas por um dos sistemas mais desumanos da história de Africa, não penso pertinente uma simples confissão pública dos pecados e reconciliação suficientes para sanar todas as feridas que ficaram dentro dos corações dos sul-africanos e de África, como alguma vez disse o venerado líder finado do partido anti-apartheid Nelson Mandela: “podemos perdoar, mas esquecer não depende de nós”. Mas se alguém não esqueceu significa que não perdoou, pois perdoar significa não nutrir mais mágoas nem ódio contra o ofensor. O perdão só é possível quando cientes de que a justiça tenha sido feita. Os sul-africanos não são tão misericordiosos o quanto o ubuntu procura defender, basta lembrar casos da xenofobia contra os próprios irmãos de África e a criminalidade na África do Sul. O perdão e a cobardia são coisas diferentes. O perdão tem seus limites e quando se ultrapassa a justa medida transforma-se ou em cobardia ou em crueldade.
Para Tinyiko Maluleke citado por R. Neville Richardson, a Comissão da Verdade e da Reconciliação, tratou superficialmente as dolorosas feridas do povo sul-africano e não se preocupou pela cura dessas feridas, na medida em que as vítimas que submeteram as queixas ao sistema segregacionista não obtiveram a reparação dos danos por ele causados. Para Maluleke é inaceitável que um perpretador dos piores crimes contra a humanidade se veja instantaneamente amnistiado e a passear livre e aproveitando de tudo o quanto os seus actos bárbaros tornaram possível adquirir, enquanto as suas vítimas permanecem afogadas na miséria e desgraça. Maluleke acredita que a Comissão da Verdade monopolizou o termo “reconciliação” dando-lhe uma forma individualista-liberal que defende uma igualdade ilusória (MALULEKE apud RICHARDSON, 2008: 73) .
Com isso, não pretendo defender que os sul-africanos tivessem que esquecer o ubuntu e retaliar contra os brancos opressores, mas sim que se devia ter pensado numa conjugação entre a justiça punitiva, a justiça restaurativa e justiça compensativa, dependendo a sua aplicação da natureza dos crimes cometidos pelo sistema segregacionista.
Para mim, admitir que a justiça restaurativa é viável no contexto africano é assumir a fraqueza do africano em ser oprimido e colonizado, pois basta o opressor confessar publicamente os seus crimes e jurar não mais praticá-los para que seja perdoado. Portanto, a que se repensar o sistema jurídico ubuntu, extraindo-se os seus aspectos positivos, é o caso da restauração, e rejeitando os seus aspectos negativos, a limitação na simples reconciliação.








Bibliografia
CASTIANO, José P. Referênciais da Filosofia Africana: ‘Em Busca da Intersubjectivação’. 1ª ed. Maputo, Ndjira, 2010;
GYEKYE, Kwame; An Essay on African Philosophical Thought: The Akan Conceptual Scheme. Philadelphia, Temple University Press, 1995;
NGOENHA, S. e CASTIANO, J.P. Pensamento Engajado: Ensaios sobre Filosofia Africana. Maputo, Educar, 2011.
RICHARDSON, Neville R. Reflections on Reconciliation and Ubuntu. In: Persons in Community. University of Kwazulu-Natal/ University of Kwazulu-Natal Library, 2008.
SHUTTE, Augustine. Ubuntu: An Ethical for a New South Africa. Cape Town, Cluster Publications, 2001.






[1] Não concordamos com esta interpretação de Ubuntu, pois considera que a pessoa é produto da outra pessoa, ou das relaçõoes interpessoais, o que ao nosso ver não constitui a realidade da pessoa africana, no geral, muito menos do ubuntu, em particular. Para nós, a pessoa é resultado da comunidade ou da colectividade humana de onde é oriunda, portanto a expressão mais adequada para interpretar a pessoa no ubuntu seria “eu sou, porque nós somos” como referenciou John Mbiti “I am, because we are”, ou como a própria máxima ubuntuista sul africana referencia “umuntu ngumuntu ngabantu” (a pessoa é pessoa através de outras pessoas).

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