De uma Democracia Representativa a uma Democracia Liquida em Moçambique: imperativos e desafios
Resumo
O presente artigo reflete
sobre a possibilidade de instauração da democracia liquida, partindo da análise
dos problemas que enfermam a democracia representativa em Moçambique. Nele
defendemos que o que enferma a democracia representativa em Moçambique é: a
falta da consciência política dos cidadãos moçambicanos, a existência de
sociedade civil fraca e a ineficiência do próprio sistema representativo. Como
solução alternativa a estes constrangimentos à verdadeira democracia, propomos
a instauração da Democracia Líquida. Porém, para que tal instauração seja
viável propomos primeiramente educação cívica a democrática aos cidadãos
moçambicanos para o desenvolvimento da consciência politica e o fortalecimento
da sociedade civil moçambicana como imperativos; e o desenvolvimento económico e
a massificação das Tic’s como desafios. O objectivo é contribuir para a
consolidação da democracia e do poder do voto dos cidadãos em Moçambique. Para
a realização deste artigo, servimo-nos revisão bibliográfica, cujas técnicas
empregues consistiram da reflexão e análise críticas nas quais buscamos
construir premissas e conclusões através do uso raciocínio, negando como as
coisas são e correm e buscando soluções alternativas.
Palavras-chave:
Democracia representativa, sociedade
civil, consciência política, Democracia líquida, educação, desenvolvimento
económico.
1.
Democracia Representativa em Moçambique: fracassada ou
sistema ineficiente?
Após uma guerra fratricida e cruel que perdurou por 16
anos, finalmente em 1994 os moçambicanos puderam ter o direito de votar nos
seus representantes políticos (o presidente da Republica e parlamentares) que
pudessem representar os seus interesses na Assembleia da República. Abria-se
nesta época uma nova fase política em Moçambique: época da democracia
representativa, da assembleia multipartidária. Tal representatividade implica
que os moçambicanos tinham que eleger candidatos que, com o mínimo de confiança,
fossem capazes de trazer prosperidade, paz e bem estar-social. Prosperidade num
país devastado pela guerra, com poucas escolas, poucos hospitais, pontes e fábricas
destruídas, com elevado índice de analfabetismo e desemprego, numa pobreza
absoluta e endividado ao extremo; paz num país onde ainda se ressentiam as
sequelas da guerra tanto do ponto de vista daqueles que a protagonizaram como
daqueles que a sofreram; bem estar-social num país caracterizado pelo
desemprego, pela agricultura de subsistência insustentável, num país que
assistia um sentimento tribal, em que quase todos os privilégios económicos e
sociais estavam localizados no sul (Maputo).
O governo instaurado após as primeiras e segundas eleições
pelo menos pôde trazer-nos e conservar a paz, mas, apesar disso, após os dois
mandatos da presidência de Chissano os moçambicanos não conseguiram sair do
mapa da pobreza absoluta, do endividamento insustentável e nem da corrupção. O
que de certa forma criou certa insatisfação e resignação ao povo. Por
conseguinte, as eleições que se seguiram foram marcadas por abstenções em massa,
dado que o povo encarnou a tese de que os candidatos não eram eleitos para
representar os seus interesses mas sim ascender ao poder para atender aos benefícios
próprios, como regalias económicas e corrupção.
Em 2004, com a fim dos mandatos de Chisssano os moçambicanos
foram mais uma vez as urnas votar num novo candidato da Frelimo, Armando
Guebuza, na esperança de que este pudesse trazer os seus velhos sonhos (a
prosperidade, a paz e o bem-estar social), mas tudo desfechou-se na mesma, ou
se calhar na pior situação. As consequências mais graves desta eleição foram: a
não transparência nas eleições e governação, a eclosão de mais um conflito
militar (Muxúngue), a perseguição política e as dívidas ocultas, sobretudo no
seu segundo mandato. Isto deixou o país na situação do país mais endividado do
mundo e portanto, com vários problemas sociais.
Como alguma vez afirmou José Paulino Castiano numa
entrevista: “Moçambique está longe ainda
de ser um país democrático[1]”,
mas a questão que se coloca é: o que enferma e enfraquece a democracia em Moçambique?
Ou por outras palavras, porque Moçambique não consegue consolidar a sua
democracia?
Em relação a esta questão, nós constatamos os seguintes
problemas que podem servir de resposta: a falta de consciência política da
parte do povo moçambicano, a existência de uma sociedade civil muita fraca e o
sistema politico ineficiente.
1.1 A falta de consciência
política do cidadão moçambicano
A insatisfação politica que reina na sociedade moçambicana
é, desde a primeira república democrático-representativa, generalizada.
Enquanto isso os moçambicanos ainda dormem, manifestando uma fraqueza irritante
no desenvolvimento da consciência politica e exercício da cidadania.
Toda a participação política do cidadão depende
necessariamente da sua consciência politica. A consciência política tem um vínculo
umbilical com a participação politica de tal maneira que não é possível uma
existir sem a outra. Logo, se um individuo não participa nas decisões políticas
implica que não desenvolveu ainda a consciência politica, ou seja, é um
analfabeto político (Bertold Brecht).
Quando os membros de uma determinada sociedade não tem consciência
política nem se interessam pelas decisões e assuntos políticos, ficam
impossibilitados de participar de forma consciente e responsável na
administração da sua polis, pois que
encontram-se desprovidos de instrumentos que lhes possibilitem a tal participação.
Um verdadeiro cidadão, qualquer que seja, Não pode ser considerado como tal se não
participa de forma crítica, construtiva e transformadora da realidade social e
politica que o circunda. Portanto, só se é cidadão quando se tem a consciência
da cidadania como um imperativo existencial de todos, como afirmou Aristóteles:
“Não é a residência que constitui o
cidadão: os estrangeiros e os escravos não são cidadãos, mas sim habitantes […]
o que constitui o cidadão, sua qualidade verdadeiramente característica, é o
direito de voto nas Assembleias e de participação no exercício do poder público
em sua pátria”” (ARISTÓTELES, s/d., p. 31).
Verdadeiro cidadão só pode ser encontrado numa verdadeira
democracia e uma verdadeira democracia só pode existir onde encontramos o
verdadeiro cidadão.
Na esteira de Sandoval, entendemos por consciência
política a composição de dimensões sócio-psicológicas de significados e
informações inter-relacionadas que permitem indivíduos tomar decisões quanto ao
melhor curso de ações em contextos e situações políticas específicas (SANDOVAL,
2001:185).
Este politólogo define consciência política tendo em
conta sete (7) dimensões psicológicas do indivíduo que são: identidade coletiva; crenças, valores e expectativas sociais;
interesses coletivos e adversários antagônicos; eficácia política; sentimento
de justiça e injustiça; vontade de agir coletivamente; e metas e repertórios de
ações (Idem).
Segundo Sandoval (1994: 34), existem mecanismos de controlo
social que impedem o desenvolvimento de uma consciência crítica, tais mecanismos
aparecem com o único papel de manter a realidade social e política como ela
está e perpetuar a dominação dos mais fortes pelos mais fracos. Estes
mecanismos podem encontrar-se nas noções culturais e nas restrições da vida
cotidiana.
As noções culturais resultam de uma construção histórica
que tende a estaticizar e dogmatizar os valores e crenças sociais de modo a
tornar as relações sociais e a própria natureza da sociedade aparentemente
naturais. Nesse aspecto, são mecanismo limitantes, questões ligadas a estratificação
social, hierarquia social, desigualdade social, etc (Idem). Estes mecanismos
podem ser elementos-obstáculos no desenvolvimento de uma consciência politica e
podem actuar como mecanismos de controle social. Por exemplo, a tradição que
ainda reina em Moçambique de que só os mais velhos (também pode aplicar-se aos
mais cultos, mais ricos, mais socialmente posicionados, etc) são sábios e,
portanto, detentores da razão; ou a discriminação social e política das
mulheres e jovens, segundo a qual estes não tem dom (no caso das mulheres) e
experiência (no caso dos jovens) para fazer ou participar nos assuntos políticos,
são alguns exemplos.
As restrições da vida cotidiana impostas aos indivíduos também
funcionam como mecanismo de controle, por exemplo, aspectos limitantes que
ocupam o tempo dos indivíduos, tais como hierarquia de valores e critérios
sociais, espontaneidade e imediatismo das decisões, economicismo e pragmatismo,
são alguns dos elementos da vida cotidiana que nos roubam o tempo para
reflectir e fazer uma analise critica sobre a realidade social e politica.
Se, como afirmam Marx e Engels (1999: 34) “a consciência
é pois um produto social”, a falta de consciência politica nos moçambicanos
pode ser explicada por dois principais factores: a pobreza absoluta e taxas
elevadas de analfabetismo.
A pobreza absoluta queima o tempo de reflexão sobre a
vida e sociedade na procura de formas e meios de sobrevivência, pois para que o
homem comece a reflectir e a mover a história é preciso que se liberte das atividades
cotidianas que garantem a subsistência e cultive o ócio (Condorcet), ou, por
outras palavras, é preciso primeiro satisfazer as suas necessidades de subsistência
para se dar tempo em reflectir com profundidade (Hobbes, Descartes). Por outro
lado, o elevado índice de analfabetismo impossibilita o desenvolvimento de consciência
política, pelo facto de a educação ser um elemento fundamental da mudança na
medida em que inculca nos indivíduos de instrumentos e informações necessários
para que haja transformação.
Sem a educação formal para a cidadania e democracia, os indivíduos
encontram-se desprovidos de ferramentas essenciais para o seu engajamento politico.
Aliás, perguntam com sarcasmo Emil O. W. Kierkegaard e Bo
Tranberg: como é que um povo politicamente analfabeto, que ignora o curso da
política, da economia e da sua sociedade poderá eleger cidadãos competentes
para representar os interesses da nação? (KIERKERGAARD & TRANBERG, 2014: 1).
A questão que nós
colocamos, é: como desenvolver a consciência politica aos moçambicanos, de tal
maneira a poderem participar nas decisões políticas?
Poderemos tentar responder a esta questão quando
apresentarmos os imperativos e desafios para a instauração da Democracia Líquida
em Moçambique.
1.2 De
uma sociedade civil fraca a uma sociedade civil forte
Para os filósofos contratualistas (Hobbes, Locke,
Rousseau e Kant) sociedade civil corresponde ao Estado político (Estado civil),
pois que resulta do contrato estabelecido no estado natural. Assim, entende-se
que sociedade civil é o estado regulado por leis e por um poder soberano enquanto
que o estado natural é regulado pelas leis da razão (ou mesmo da natureza).
Três principais filósofos discutiram sobre o conceito de
sociedade civil no sentido moderno do termo: Hegel, Marx e Gramsci. Hegel foi o
primeiro filósofo a usar o termo sociedade civil para denominar não mais ao
Estado político, mas sim ao estado pré-politico, ou seja, para denominar ao
Estado que dá origem e condiciona a sociedade política. A sociedade civil
constitui o momento intermediário entre a família e o estado. A sociedade civil
em Hegel não é apenas a esfera das relações económicas mas também da sua regulamentação
externa, atendendo aos princípios do Estado liberal (BOBBIO, 1982: 30).
Já Marx,
interpretado por Neto, conceiturá a sociedade civil não mais como predicado mas
sim como sujeito, revelando seu conteúdo de classe, retirando a áurea de
representante da vontade geral e encarnação da Razão Universal. Em Marx a
sociedade civil e o estado desenvolvem uma relação antitética. a sociedade
civil corresponde a estrutura e o Estado corresponde a superestrutura. (NETO,
2010: 41-42).
Assim
Marx não identifica, como em Hegel, as corporações como partes da sociedade
civil. Esta corresponde à base material
de produção e intercâmbio da vida humana, à esfera económica, sendo assim o
momento infraestrutural.
Para Gramsci interpretado por Bobbio, sociedade civil
corresponde a dois planos superestruturais: 1) o conjunto de organismos
privados, e o 2) da sociedade politica ou Estado. Estes planos correspondem à função
hegemónica que um grupo dominante exerce em toda a sociedade. Assim, SC
corresponde ao conjunto de relações ideológico-culturais, ou seja, a todo o
conjunto da vida espiritual e intelectual (BOBBIO, 1982: 32- 33).
Todavia, tanto em Marx como em Grasmci sociedade civil
apresenta-se como momento motor da história. Em Marx, o motor das história são
as forças produtivas (momento estrutural) enquanto que em Gramsci são as forças
ideológico-culturais (a superestrutura). Gramsci reconhece a relação dialética
entre o momento estrutural (objectivo) e o momento superestrutural (subjectivo)
no progresso histórico, entretanto dá privilégio ao segundo que o primeiro. O
mais importante aqui é que para ambos o centro da mudança, do movimento histórico
não é mais o Estado mas a sociedade civil, ao contrário de Hegel.
Do ponto de vista sociopolítico, sociedade civil é a arena
da sociedade fora da família, do mercado e do Estado onde as pessoas se
associam para realizarem interesses, não só interesses comuns mas também aspirações
e interesses particulares ou mesmo privados, o objecto da sociedade civil é a
arena pública de convergência de acções colectivas (FRANCISCO, 2010: 55).
Entenda-se por arena, o espaço público institucional onde
pessoas diferentes se juntam para debater, negociar ou mesmo conquistar
supremacia sobre outras pessoas, visando influenciar políticas e programas
sociais, para o bem comum, mas também, para benefício de grupos de interesses
individuais e privados (Idem).
Quanto a capacidade de actuar, exigir e atingir os seus
objectivos, a sociedade civil pode ser classificada como sendo fraca ou forte.
Quanto à forma de actuar, ela é forte se ela actua de forma dinâmica, autónoma
e pacífica e não de forma violenta (por ex. recorrendo à guerra, linchamentos,
terrorismo, ameaças de violência, etc), estática e heterónoma; quanto a forma
de exigir, se os níveis de intervenção e participação política são os
dinâmicos, desejáveis ou suficientes para a mudança progressiva da sociedade em
que se encerre; e quanto aos objectivos, se a sociedade civil consegue fomentar
a democracia, boa governação, desenvolvimento equitativo e sustentável, coesão
social e bem-estar comum, e não o contrário. O contrário seria uma sociedade
civil fraca.
Contudo, a forma de actuar, exigir e atingir os
obejctivos da sociedade civil dependem geralmente de vários factores, tais
como, por exemplo, factores socioculturais (os valores e as crenças),
politico-históricos (regimes políticos precedentes), político-institucionais
(democráticos ou não), económicos (autonomia ou dependência económica), etc.
1.2.1 A
fraqueza da sociedade civil moçambicana
As primeiras Organizações da Sociedade Civil (OSC) em Moçambique
remontam da era colonial e tomaram ora o carácter artístico-cultural, ora
desportivo ora militar, e tinham como principal objectivo lutar pela independência
nacional.
Após a independência nacional, a primeira república, imbuída
de valores socialistas marxistas-leninistas, caracterizou-se pelo
monopartidarismo e intolerância politica, o que dificultou a emergência de uma
sociedade civil que defendesse os interesses da sociedade e seus próprios
interesses particulares.
A sociedade civil moçambicana do passado como a actual
tem sido caracterizadas por estudiosos do assunto como fracas devido ao fraco
desenvolvimento humano, económico e institucional da sociedade moçambicana que
torna difícil a actividade de reflexão sobre o progresso e a construção da
sociedade moçambicana. A fraqueza da sociedade moçambicana no geral e o fraco
carácter e baixo de nível de competência das OSC e dos seus líderes são os
factores principais da fraqueza da SCM.
A fraca existência de pressão interna fora do Governo
para melhorar a vida dos moçambicanos é uma manifestação das características
estruturais profundas da realidade moçambicana, que só poderá mudar à medida
que se verificar o progresso económico e social em Moçambique.
A segunda razão da fraqueza SCM, está no facto de a
Sociedade Civil actual ignorar o passado histórico, fonte fundamental de inspiração
para fortalecer a maturidade da sociedade civil contemporânea. Neste ponto
destaca-se a roptura de continuidade integracional entre as gerações da
sociedade civil precedentes e as recentes gerações na constituição do carácter
e da integridade das Organizações da Sociedade Civil e, por outro lado,
verifica-se em todo o curso histórico, que as OSC e suas lideranças não
conseguiram obter soluções pacíficas e progressos nos impasses criados pelos
regimes políticos instituídos. A sociedade civil teve que usar a violência (luta
armada) para conquistar a independência; no regime socialista, por este ter
optado pela repressão e perseguição de todas as formas de manifestação, a
sociedade civil optou por uma guerra civil que durou 16 anos; de lá para cá, o
principal meio de negociação para impôr os interesses da sociedade tem sido o
uso da violência [greves violentas (2008) e linchamentos] (FRANCISCO, 2010: 86).
A terceira razão da avaliação negativa da OSM
relaciona-se aos valores e ao impacto destas organizações na sociedade. Pois a
sociedade civil moçambicana e suas lideranças carecem de confiança, devido as
suas incapacidades de afirmar autoridade e credibilidade suficientes. Isto
explica-se, por um lado, pela fraqueza de carácter, integridade e dignidade,
por outro lado, pela fraqueza de competência, técnica e educacional, da maioria
dos membros que compõem e lideram as OSC (Idem).
Além disso, muitas organizações da sociedade civil moçambicana
nada mais são senão a emanação do partido no poder (Frelimo), servindo para
este partido de instrumentos para defender os seus interesses e não os
agendados pela própria organização.
Hodges e Tibana (2005), afirmam que para além
das igrejas, autoridades tradicionais e algumas ONG envolvidas na prestação de
serviços, as organizações da sociedade civil quase não têm nenhuma ligação com
o mundo rural. Dado que a vasta maioria dos moçambicanos trabalha numa
agricultura de subsistência, em pequenas explorações agrícolas com poucas
ligações aos mercados, e tem baixos níveis de escolaridade e um acesso limitado
à informação é-lhe inerentemente difícil organizar-se para defender e promover
os seus interesses.
De um modo geral, Hodges e Tibana sublinham que os baixos
níveis de escolaridade e os altos níveis de analfabetismo, particularmente nas
áreas rurais, são uma barreira ao acesso à informação e ao conhecimento,
inclusive através da imprensa, e impedem a auto-organização. Isto é reforçado
pela vulnerabilidade sobretudo da maioria da população que vive num estado de
pobreza absoluta, mas também de muitos moçambicanos que vivem apenas um pouco
acima do limiar da pobreza e estão conscientes da precariedade do seu modo de
vida. Em síntese, muitos moçambicanos estão preocupados com a sobrevivência
diária, o que lhes deixa muito pouco tempo para reflectir sobre questões
políticas mais gerais, participar nas organizações da sociedade civil ou
realizar actividades colectivas. (Ibid.: 37-50).
Perante estas avaliações negativas da SCM, a questão
urgente é: como tornar a sociedade civil moçambicana forte?
Esta questão fica por ser respondida na secção sobre os
imperativos e desafios para a instauração da democracia líquida em Moçambique. Antes,
vejamos o que é Democracia Liquida.
2.1 Democracia Líquida: alternativa à Democracia Representativa?
Democracia
Líquida é uma forma de governo sugerido pelos partidos piratas, que buscam através
desta forma combinar a Democracia Representativa e a Democracia de Participação
Directa. A Democracia Líquida apresenta-se como uma síntese destas duas formas
de governo e caracteriza-se pela maximização e garantia do cumprimento dos objetivos
e valores das mesmas (BLUM & ZUBER, 2015: 1). Os
partidos piratas supõem que a democracia líquida é a alternativa mais prática
entre a democracia representativa e a democracia directa (NIJEBOER, 2013: 1).
Na
Democracia Directa todos os cidadãos participam das decisões políticas nas
assembleias públicas, todos tem direito à palavra de decisão. Este tipo de
democracia vigorou na Atenas antiga, e é característico e realizável nos
estados pequenos, podendo ser difícil a sua implementação nos grandes e
complexos estados. Daí que os estados largos e complexos veem como
alternativa à Democracia Directa, a Democracia Representativa, na qual são
eleitos alguns cidadãos julgados competentes para representar os interesses dos
eleitores (a maioria). Só que a Democracia Representativa muitas vezes falha,
dado que os representantes eleitos, uma vez estando no poder, não mais
representam os interesses dos seus eleitores, mas os seus próprios interesses,
os interesses da ideologia do Estado e buscam antes de mais nada benefícios próprios.
Durante o mandato os eleitores dificilmente podem destituir o governante
representante caso não responda aos objectivos para os quais fora votado. No
fim do mandato, os representantes não tem obrigação de prestar as contas sobre
o cumprimento ou não do manifesto, não existe nem instrumento nem um critério
para tal responsabilização (SCHIERNER, s/d.: 4-5).
Entretanto,
a Democracia Líquida é vista como uma mistura ideal entre a Democracia Directa
e a Democracia Representativa. Neste tipo de democracia as pessoas podem
delegar o seu voto a alguns cidadãos, que podem também autovotar-se ou delegar
o seu voto a outros cidadãos ou políticos. Além disso, os cidadãos podem
decidir nalgum momento se querem participar directamente das decisões ou se
preferem delegar essa função a outro(s) (NIJEBOER, 2013: 1).
Segundo
Schiener, Democracia Líquida é uma nova forma de tomada de decisão colectiva
que oferece aos eleitores um controle decisional completo (SCHIERNER, s/d.: 6).
Se na democracia direta, todos os eleitores votam directamente num determinado
assunto e na democracia representativa, elegem primeiramente os representantes
que posteriormente devem representar os seus interesses, na democracia liquida
os eleitores podem votar directamente sobre certos assuntos, ou podem delegar o
seu voto aos representantes que possuem mais conhecimentos e experiências específicos
sobre o assunto, ou àqueles que têm mais tempo para se informar e inteirar-se
do assunto. Neste caso, a delegação é um sinal de confiança ao delegado para
representar os eleitores em certas decisões (Ibid.: 7).
Este
senso de confiança provisória é importante para criar o senso de
responsabilidade aos delegados e os incitar a prestar as contas.
A delegação
não é estática nem unidirecional, mas sim transitiva. Ou seja, os delegados
podem delegar a outros delegados para que eles votem em seu lugar e no dos
eleitores precedentes (que tinham delegado seus votos). Esta transitividade
assegura que os peritos possam delegar a confiança que eles têm acumulado a
outros delegados sobre certos assuntos que não se sintam suficientemente competentes
de resolver. (Ibid.: 8).
2.1 Os pontos fortes da democracia liquida
Schierne
reconhece que a democracia líquida é um sistema muito complexo e difícil que a
democracia directa e representativa, porém sublinha que as vantagens que ela
oferece abafa as dificuldades para a sua implementação.
Schierne
sublinha seis (6) razões porque temos que escolher a Democracia Líquida. A
primeira razão defende que, a democracia líquida é verdadeiramente democrática
porque os eleitores tem a escolha seja de votar numa pessoa seja de delegar o
seu voto a qualquer outra; a segunda razão, é que a Democracia Líquida
apresenta poucos obstáculos à participação, dado que a exigência mínima para
tornar-se delegado é de ser confiado pelo delegante e essa confiança é baseada
no mérito, ou seja, no conjunto de conhecimentos, competências e experiência na
administração e resolução de certos assuntos; em terceiro
lugar, a Democracia Líquida é cooperação e não competição na medida em que dispensa
de campanhas eleitorais tão dispendiosas e inúteis, da tentativa de desmascarar
os candidatos adversários, evita também conflitos entre partidos durante a
campanha, o que é próprio da democracia representativa. Na Democracia Líquida
ganha-se confiança através das competências e do trabalho; a quarta
razão, a democracia líquida funda-se no princípio de responsabilidade, na
medida em que a delegação é um indício de confiança provisória, que se for traída
há necessidade de se prestar as contas; a quinta razão, Democracia Líquida é representação
directa das minorias graças à quase inexistência de obstáculos de participação,
podendo, portanto, as minorias ser representadas; a quinta razão, a democracia líquida
traz as melhores decisões na medida em que é baseada no critério de
meritocracia, segundo a qual só os peritos, os talentosos, os experientes, os competentes
e especialistas de determinados assuntos tem o mérito de tomar decisões sobre
esses assuntos, podendo deles esperar-se as melhores decisões em relação a
todos os membros da sociedade; por fim, a sexta razão, está no facto
de a democracia liquida ser evolutiva, dado que a sociedade actual está sempre
com conhecimentos e competências em constante atualização, significando isso
que os mais informados sobre as novas tendências de resolução e administração
de certos problemas estarão em constante substituição de delegações com os
delegados desatualizados ou menos informados dentro de determinadas conjeturas.
2.2 Os pontos fracos da Democracia Líquida
Segundo
Arjen Nijeboer, a Democracia Líquida é um complicado sistema de delegações não necessário
na medida em que, num primeiro momento, os cidadãos devem entender todo o
funcionamento do sistema democrático, de modo a que haja transparência e confiança
no sistema de tal maneira que este possa sobreviver. Para além disso, num
segundo momento, todos os cidadãos devem ser capazes de usar o sistema democrático,
não apenas os jovens e os formados em matérias de informática e internet, como também
os idosos que só tiveram a oportunidade de terminar a escola primária. Em
terceiro lugar, a procuração do voto diferenciada pelo tópico como propõe a
democracia líquida pode levantar o problema da falta de claridade e conflitos. Além
disso, quanto mais complexa for a delegação de votos, mais tempo requer e
torna-se mais chato gerir tudo. É óbvio que em quase todas as sociedades, a
maioria dos cidadãos não querem despender o seu tempo na política. Em
quarto lugar, um sistema de voto deve contar com num sistema de computadores
que só podem ser compreendidos e controlados por poucas agências e pessoas
peritas nesta área. A Democracia Líquida, com o seu complexo modelo de delegações,
é somente possível através de sistemas de software
altamente transparentes. Além disso o sistema de votação via internet corre o
risco de ser invadido e corrompido por ciberpiratas (hackers) de tal forma a criar uma fraude, portanto, o papel e a caneta
continuam sendo meios menos vulneráveis à fraude. Simplicidade e transparência são
as precondições de qualquer sistema de voto. A Democracia
Líquida exige uma total reestruturação da democracia e uma substancial reeducação
dos cidadãos, o que torna difícil a sua instauração (NIJEBOER, 2013: 2-4).
Para Blum
e Zuber, a democracia líquida levanta o problema da desigualdade no poder de
voto na medida em que as pessoas comuns, porque possuem poucos conhecimentos,
tem pouco poder de delegar os seus votos em relação as pessoas extraordinárias
(BLUM E ZUBER, 2015: 23).
A Democracia
Líquida também levanta problemas de inconsistência política na medida em que dá
aos indivíduos livre escolha de delegar o seu voto ou não, numa determinada área
específica. Entretanto esta delegação de área específica implica que a composição
do corpo de decisão varia de área em área. A inconsistência politica tem a ver
com o facto de as decisões politicas serem feitas em áreas específicas e não em
vista ao bem-estar comum de toda a sociedade como um todo (Ibid.: 24).
Para nós
a Democracia Líquida pode ser uma alternativa para o resgate do poder do voto
aos moçambicanos, porém a sua complexidade e profundidade exige que primeiro
respondamos a certos imperativos e desafios para a sua instauração, num Estado
pobre e desorganizado como o nosso.
2.3 Imperativos e desafios para a instauração da
Democracia Líquida em Moçambique
Como
vimos nas páginas anteriores, constatamos que o que enferma a democracia moçambicana
são dois principais factores: a ausência da consciência política da parte do cidadão
moçambicano e a existência de sociedade civil muito fraca. Neste capítulo,
queremos sublinhar que há necessidade de se instaurar a democracia liquida em Moçambique
de modo que os cidadãos possam ter maior espaço de intervenção em assuntos políticos
e de tal maneira que os representantes eleitos possam atender aos interesses da
sociedade com maior responsabilidade e comprometimento. Contudo, sublinhamos
que, para que isso aconteça há necessidade de se responder a dois imperativos:
desenvolvimento da consciência politica e o fortalecimento da sociedade civil;
e a dois desafios: o desenvolvimento económico e a massificação do uso das
novas tecnologias de informação e comunicação e internet.
2.3.1 Alfabetização politica para consciência política
A
democracia líquida é um sistema de delegação muito complexo e complicado e que
exige da sociedade educação suficiente em todos os domínios do saber, mas
sobretudo a educação para a cidadania para a sua implementação. A educação para
a cidadania só é possível através de uma educação cívica e democrática.
Por educação
cívica entendemos aquela que torna o cidadão consciente dos seus direitos e
deveres na sociedade. A educação democrática é aquela baseada na conscientização
das massas dos problemas histórico-sociais usando como método de ensino e aprendizagem
o diálogo aberto e crítico sobre a realidade sócio-histórica de uma determinada
sociedade.
A educação dota o homem de capacidades intelectuais e práticas
que o possibilitam a fazer uma análise crítica de sua própria condição
existencial e da sua sociedade. Entretanto há necessidade de se formar um cidadão
com consciência crítica de modo a que haja maior consciência e participação políticas
(Freire).
Contudo, a educação é apenas um ponto de partida e não um
salvador messiânico em si e por si, pois se a politica que se faz num
determinado território é uma política de dominação, ou seja, da opressão da
classe dominada (o povo) pela classe dominante (as elites governantes), a mesma
política deve servir de instrumento de libertação. É a mesma política que
devera devolver o poder de decisão e do voto ao povo. Como? Através da participação
política do cidadão, do debate de ideias, da crítica, da manifestação pacífica
e do voto consciente.
Bem afirmou Nicolas Journet que “o simples facto de dar o
poder aos cidadãos não garante a viabilidade das suas decisões, nem suas
qualidades” (JOURNET, 2017: 2). Entretanto, o papel da educação é o de preparar
e orientar o cidadão para o exercício da cidadania, sabendo o que é votar e
porque votar e a quem votar.
2.3.2 Fortalecer a sociedade civil moçambicana
Para que a sociedade civil moçambicana se torne forte
Francisco recomenda que cultive os seguintes imperativos:1) Dignidade
pacifista; 2) honestidade corajosa; 3) Excelência; 4); transparência; e 5) Confiança.
O imperativo da dignidade, consistirá numa reflexão
corajosa, íntegra e com sentido de responsabilidade sobre a consolidação da
democracia pluralista moçambicana; o imperativo da "honestidade
corajosa" consistirá na tomada de consciência dos problemas presentes e na
busca do passado como fonte de inspiração para a sua resolução; o imperativo da Excelência consiste no
desenvolvimento de carácter e competências que possam garantir com que os
interesses comuns da sociedade não se tornem vítimas de interesses particulares
estabelecidos; o imperativo da transparência
consiste no exercício de práticas honestas, íntegras e de comprometimento com objectivos
socialmente viáveis; por fim, o
imperativo da confiança consiste em a SCM conquistar a confiança das pessoas,
através da mudança do ambiente de fraca credibilidade em que ela se encontra
(FRANCISCO, 2010: 88-91).
Em suma, para Francisco o sucesso ou fracasso do
fortalecimento da SCM dependerá, em grande mediada, da criação de
infra-estruturas e condições institucionais para que as OSC se tornem mais
competentes, eficientes e eficazes.
Para nós seria mais pertinente que, se se instaurasse
Democracia Liquida em Moçambique, a delegação de votos não fosse feita pelo
cidadão como indivíduo mas sim pelas Organizações da Sociedade Civil enquanto
grupos de interesse que sabem a quem melhor podem delegar as suas decisões e
representar seus interesses. Além disso, é necessário que a Democracia
considere funções e virtudes democráticas importantes tais como, por exemplo, a
deliberação pública e o valor da ética na confiança depositada aos delegados e
não apenas conhecimentos específicos sobre certos assuntos.
2.3.3 O desenvolvimento
económico e a massificação das TIC’s
De um modo geral, é primeiramente necessário que se
melhore as condições económicas e sociais dos moçambicanos, todavia para que
haja desenvolvimento económico e social é antes de mais nada necessário que a
SCM por si só, lute por autoafirmar-se como sociedade civil forte e busque
exigir e defender os interesses da sociedade bem como os interesses
particulares de diversos grupos. Este é o desafio do desenvolvimento económico
e social de que Moçambique precisa para instaurar a democracia liquida.
Outro desafio, também muito importante, é a massificação
das novas tecnologias de informação e o ensino do seu uso, dado que a
Democracia Liquida aposta mais no sistema de votação eletrónico-virtual. Além
disso, estas novas tecnologias de informação contribuirão grandemente para a
expansão da informação e comunicação àquelas camadas sociais que tem
dificuldades ao seu acesso, como por exemplo, os camponeses nas zonas rurais.
Conclusão
No
percurso deste trabalho descrevemos o correr da Democracia Representaviva em Moçambique
desde a sua instituição até aos tempos hodiernos, e constatamos que durante
este percurso todo a Democracia Representativa em Moçambique tem sido condenada
ao fracasso, devido à sua 1) fraca representatividade; 2) à abstenção ao voto
de um considerável número da população e; 3) ao não atingir os objectivos
almejados pelo povo: a paz, a prosperidade e o bem-estar social.
Nesta constatação
identificamos três grandes problemas que enfermam a Democracia em Moçambique,
que são: 1) a falta da consciência política da parte do cidadão moçambicano; 2)
a existência de uma sociedade civil muito fraca e; 3) a ineficiência do próprio
sistema democrático-representativo.
Constatamos,
também, que o que contribui para a falta da consciência política em Moçambique
é, principalmente, 1) a falta da educação, ou seja, a prevalência de um grande número
de cidadãos analfabetos e; 2) a pobreza absoluta (que ocupa o maior tempo dos moçambicanos
na procura de meios e condições de sobrevivência não ganhando tempo para reflectir
sobre a sua condição social e politica); constatamos ainda que a sociedade
Civil moçambicana é fraca porque 1) não consegue atingir os seus objectivos por
meios pacíficos; 2) não é autónoma (depende dos doadores); 3) é geralmente partidária,
etc.; observamos que a Democracia Representativa é um sistema ineficiente
porque 1) geralmente o critério de candidatura é duvidoso, ou seja, as razões
que levam um cidadão a candidatar-se a um certo cargo político não são transparentes;
2) o eleitor dificilmente pode afastar o governante eleito durante o mandato
caso não responda aos interesses pelos quais fora votado e; 3) após o mandato não
existe nenhum instrumento nem critério de prestação de contas, caso o
governante não tenha atingido os objectivos da sua governação.
Perante
estes todos problemas propusemos a Democracia Líquida como sistema alternativo.
Explicamos que a Democracia Liquida é síntese da Democracia Directa e
Democracia Representativa e que consiste em que o cidadão pode votar
directamente num assunto ou delegar o seu voto à pessoas especialistas e
peritas para votar num determinado assunto.
Observamos ainda que para instauração da Democracia Líquida
é necessário atendermos a dois grandes imperativos: 1) a alfabetização política
através educação cívica e democrática aos cidadãos moçambicanos para o
desenvolvimento da consciência política e; 2) o fortalecimento da sociedade
civil moçambicana; e dois desafios: 1) o desenvolvimento económico e; 2) a
massificação das Tic’s.
Em jeito de conclusão, é necessário termos a consciência
de que a Democracia Líquida é um sistema democrático inevitável, pois tem como
origem o progresso social, económico, político, científico e tecnológico das
sociedades modernas. Por isso, urge repensarmos neste sistema sem esquecermos a
nossa realidade histórico-social e cultural.
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[1] CASTIANO, J.P. “Vozes da Liberdade”: Nos 40 anos da
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a 24 de Junho de 2015.
Bem-haja a intelectualidade da juventude em demonstrar os seus pontos de análise diante da situação que enferma o nosso quotidiano. Tenho dificuldades em anotar o teor da democracia num país que ainda se dificulta a distinção desta com a ditadura. Claro, que essa nossa democracia é tão eivada de defeitos que constantemente vemos exemplos dos variados "desvios" de conduta dos nossos estimados políticos. A democracia em Moçambique parece ser tão frágil, um mero conceito ideológico, no sentido marxista de facto, que serve apenas para ludibriar o mais "inocente" eleitor, esse ser tão importante durante os meses que antecedem alguma eleição. A democracia em Moçambique não nos ensina a identificar os maus políticos mas sim a conviver com os maus políticos, aliás, o que é ser um mau político? Como definir um bom ou um mau político numa situação de dependência mútua – ideológica? Como lidar, por exemplo, com indivíduos que só lembram de seus eleitores justamente no período próximo às eleições? Também dentro de dias, numa das Universidades poderemos ver sistemas camuflados de ideias partidárias que se juntam a ciência e esta de forma impecável volta a perder o seu lugar tornando se ideologia para um grupo de pessoas. Para tal, precisa mesmo da alfabetização em novas modalidades e que os alfabetizados consigam distinguir o aprendizado em máxima importância para o desenrolar das suas actividades quotidianas.
ResponderEliminarBoa reflexão caro Cumbana!
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