Filosofia
de Intervenção Social: Uma Alternativa à Cultura de Paz em Moçambique
Nota-introdutória
O artigo
analisa o papel do ensino de filosofia na construção da democracia e espírito
de cidadania em Moçambique. Nele propomos que a filosofia no ensino secundário,
como no universitário, deve abandonar o seu carácter puramente teórico e
contemplativo e que passe a ser um instrumento de intervenção social e de
transformação da sociedade, conjugando a reflexão e a acção. Pois, ao nosso
ver, ensinar a filosofia aos moçambicanos de modo que possam ser democráticos,
cidadãos participativos e comprometidos com a coisa pública significa inculcar
neles um espirito de paz, em que as ideias e palavra são as armas confiadas
para a resolução dos problemas político-sociais, e não as armas bélicas.
Filosofia
é uma das disciplinas que temos que encarar quando principiamos o ensino pré-universitário
e, principalmente, o universitário no caso do nosso pais Moçambique. A palavra
filosofia deriva do grego e é constituída por duas palavras filon = amor, ou amizade, ou busca; e sophia = sabedoria, verdade; etimologicamente filosofia significa amor à sabedoria ou busca da verdade.
Para
muitos, lidar com esta ciência não tem sido tarefa fácil, pois ela tem sido
conotada como sendo ciência extremamente difícil, própria para os “loucos do
saber” ou dos sábios, indivíduos que
não têm tempo para nada na vida senão procurar problemas onde não existem. Aliás,
Platão afirmara n’A República que a filosofia é ciência dos “espíritos nobres”,
bem educados, que se isolam do mundo, limpos de corrupção, e que são fieis à sua natureza e vocação (PLATÃO, 1949:
270).
O que
caracteriza o estado de espirito dos filósofos é a curiosidade, a inquietude, o
espanto ou o assombro perante o ser, como afirma Aristóteles. Este estado de
espirito é que leva ao filósofo a um constante questionamento sobre o ser,
sobre o homem, a sua vida e a sua relação com os outros homens, com o poder
politico, com a natureza e com Deus. Mas é ainda a sua capacidade de questionar
(e um questionamento crítico), que o leva a constante insatisfação pelas
respostas obtidas, ao desejo constante de busca da verdade. Para alguns, a
filosofia, ou melhor, o filósofo perturba a ordem pública, para outros ela não
serve para nada.
Segundo
Luckesi (1994), é preciso eliminarmos os preconceitos de que a filosofia é
inútil, difícil e complicada, para ele a tarefa de filosofar não é tão difícil como
se tem acreditado. Ele propõe três passos do processo do filosofar: 1º) Inventariar
os valores que explicam e orientam a nossa vida, e a vida da sociedade, e que dimensionam
as finalidades da prática humana; 2º) momento de crítica, tomar esses valores e
submetê-los a crítica acerbada, questioná-los por todos os ângulos possíveis
para verificar se são significativos e se, de facto compõem o sentido que
queremos dar à existência; 3º) Construção crítica dos valores que sejam
significativos para compreender e orientar nossas vidas individuais e dentro da
sociedade. Estes três passos, só serão difíceis a aqueles que não tem a coragem
para os trilhar.
A
filosofia, juntamente com a educação, são instrumentos de transformação social,
uma vez que orientam a existência humana, orienta convivência entre os homens,
a sociedade. A própria educação precisa da orientação filosófica para a sua
caminhada.
1.1 A Pertinência da filosofia
na educação
Uma
das questões que podemos levantar sobre a pertinência da introdução da
filosofia em Moçambique, será: para quê o ensino de filosofia nas escolas e
universidades moçambicanas? Que papel é chamada a desempenhar no contexto
moçambicano? Ou, por outra, qual é a importância da aprendizagem da filosofia
em Moçambique?
Ngoenha
(2003), no prefácio do manual de filosofia daf 11ª e 12ª intitulado “A Emergência
do Filosofar”, afirma que a pertinência da introdução da filosofia no ensino secundário
nas escolas e universidades moçambicanas reside na capacidade de responder às
diversas questões que são a ela colocadas, questões essencialmente filosóficas,
principalmente de timbre, ético, epistemológico e político. Para Ngoenha a
filosofia é um instrumento de emancipação, e é neste âmbito que o ensino de filosofia
em Moçambique aparece para reforçar a consolidação da paz, a incrementação da
democracia e o desenvolvimento económico e social.
1.2 Filosofia, democracia e
cidadania
Os gregos mostraram-se os
primeiros povos a optar por uma política democrática. Por democracia entende-se uma forma de
governo cuja soberania reside no povo, isto é, o povo decide quem deve
governar, como deve governar, para que fim governar e que meios deve usar para
consecução desse fim.
A democracia grega era uma
democracia popular directa e elitista. Era popular directa porque o povo, ou
melhor, qualquer um podia participar nas assembleias públicas e fazer decisões
políticas sem que para tal fosse necessário ser um membro do governo ou
representante oficial do povo, bastando apenas ser um cidadão competente para
isso; era uma democracia elitista porque só os cultos, munidos de filosofia ou
retórica, podiam dela participar. Só estes últimos podiam trazer soluções aos
problemas da polis (Cidade-Estado), a partir do conhecimento e do poder da
persuasão. Portanto, a Filosofia e a retórica eram vistos como requisitos
necessários para a participação activa na vida da polis.
A filosofia não apenas é uma
empresa construtora de utopias no mundo ideal, mas também uma empresa de
reparação de falhas e defeitos do mundo real com vista a tornar este mais ou
menos idêntico ao mundo ideal. Os trabalhadores desta empresa são os filósofos,
seres não apenas racionais, mas também extremamente inquietos, críticos e
comprometidos com busca da verdade, da justiça, da felicidade, da paz entre
outros ideais, para a humanidade. E a finalidade do Estado é a de garantir a
plena satisfação destes ideais ao seu povo.
Moçambique é um país com
elevados índices de pobreza, de analfabetismo, problemas político-sociais,
calamidades naturais, problemas ético-culturais e, sendo a maioria do povo
analfabeta, é chamada a participar na condução da res publika sem meios para exercer a tal dita participação. No
entanto, poucos se interessam em participar nas questões político-sociais.
Todavia, a consolidação da democracia neste país depende dos níveis de
participação do seu povo nas decisões da polis,
não é um dever, é sim um direito cívico e é a partir dele que nos podemos
tornar senhores de nós mesmos, responsáveis pelas nossas vidas e do nosso comum
destino como moçambicanos.
Se a maioria do povo
moçambicano não tem meios para exercer a participação activa nas decisões e
problemas da polis, os filósofos o
que fazem? Serão mesmo filósofos ou filo-filósofos? Ou talvez serão filósofos
porque possuem o certificado de Filosofia com a bela e fantástica descrição ‘Licenciado em (Ensino de) Filosofia”, ou “Mestre
em Filosofia”, ou ainda “Doutorado em Filosofia” ou esperam por este para
se considerarem filósofos!? Então, para quê o ensino de filosofia, ou a formação nesta área?
Hanah arendt (1993) criticou o
silêncio e a indiferença dos filósofos perante as barbaridades cometidas pela
politica. Ela afirmou que os filosofos de então limitavam-se apenas a contemplar a
verdade e não intervém na vida concreta dos homens. A sabedoria dos filósofos,
é demasiado teórica que não ajuda na melhoria do mundo. O ideal do filósofo em
Arendt é Sócrates. Para ela, Sócrates foi “um pensador que ficou entre os
homens, que não tinha medo do sistema, que era cidadão entre os cidadãos”.
Mas antes de Arendt, Marx criticara toda a filosofia que até então tinha
sido feita porque só se limitava a contemplar o mundo e não a transformá-lo.
Para ele a filosofia é uma práxis,
isto é, uma prática que visa transformar a sociedade.
Marx
não nega a existência da teoria, pelo contrário, ela deve existir e ir ao
encontro das massas. A teoria deve poder mover a sociedade para um estado
melhor e, para tal, deve ser complementada pela praxis (prática). Afirma Marx:
“contrariamente à filosofia alemã, que desce do céu para a terra, aqui parte-se
da terra para céu” (Idem). Isto é, deve partir dos problemas histórico-sociais
(a realidade concreta) para o que deveria ser (o ideal).
É
neste contexto que defendemos que o ensino de filosofia nas escolas e universidades
moçambicanas deve impulsionar aos estudantes o espirito de cidadania, isto é,
de conhecimento contemplativo, a filosofia deve transformar-se num instrumento
de intervenção social. Por cidadania entendemos não apenas o reconhecimento dos
nossos direitos e deveres como cidadãos, mas também como sendo a qualidade de
consciência que o cidadão tem do direito à participação política, não uma
consciência teórica mas sim prática. Defendemos o ensino de filosofia para munir
os moçambicanos de instrumentos teóricos e práticos para a intervenção social.
Filosofia de
Intervenção Social porque pretende-se que seja dotada de acções que visem o bem-estar
da sociedade, o que implica que será uma procura de mudança numa perspectiva de
curto ou longo prazo.
O
filósofo moçambicano, Severino Ngoenha, na sua obra “Os Tempos da Filosofia”, traz-nos uma visão preventiva e não
contemplativa da filosofia. Tal como Karl Marx, ele defende que a filosofia não
só deve interpretar o mundo, mas deve sobretudo transformá-lo procurando
oferecer aos homens melhores alternativas de interpretar e agir sobre a sua
história.
Para
ele, os filósofos devem “inspirar-se dos modelos utópicos da justiça mas, por
sua vez, tem que ter presente que esta justiça não se pode encontrar fora das
conjunturas histórico-sociais condicionadas pelos seus imperativos políticos,
económicos e sociais”. O que Ngoenha quer dizer é que podemos nos inspirar nas
utopias filosóficas mas só podemos conquistar esses ideais se os tentarmos
aplicar dentro do nosso contexto histórico-social.
Ngoenha
(Idem) diz que para melhorar as condições de vida das populações é necessário
que haja uma elite que não se confunda com os detentores de diplomas, mas com a
produção de ideias e com a ousadia de participar, sabendo antecipadamente que
ser intelectual foi e sempre será um risco.
Ora se
a filosofia deve passar a ser interventiva, significa que ela terá que ser
prática e dialógica, pois não pode haver verdadeira intervenção onde uns
consideram –se os donos das ideias e das palavras em relação aos outros. A praxis
dialógica consiste no uso da palavra para a transformação da realidade social e
na conjugação da reflexão e acção. Este uso não é um privilégio de ninguém mas
um direito de todos os cidadãos que vivem num estado democrático. O uso da
palavra implica o reconhecimento do outro como sujeito, capaz de pensar, sentir
e decidir sobre a sua vida em relação aos outros. O reconhecimento do outro
como sujeito implica que o diálogo filosófico é um diálogo intersubjectivo
(Castiano) em que diversos sujeitos buscam em comunhão construir a sociedade. O
verdadeiro diálogo não se mistura com o egocentrismo, nem regionalismo, nem com
racismo ou tribalismo. O verdadeiro diálogo é aquele que se dá entre pessoas
iguais e diferentes. Iguais enquanto sujeitos da razão diálogica, da sua vida e
do seu destino; diferentes enquanto pessoas que tem carácteres e perspectivas
que embora diferentes e adversas, podem chegar a um consenso. Portanto, a
palavra torna-se a arma através da qual possam ser disparados mortalmente todos
os factores ideológicos que enfermem a
sociedade, as balas dessa arma serão as ideias, no geral, as filosóficas, em
particular. Daí que, numa sociedade em que os homens depositam a confiança na
palavra para a resolução dos problemas político-sociais, ser desnecessário o
recurso às armas bélicas para a resolução dos mesmos. É neste sentido, que a
filosofia de intervenção social aparece como uma alternativa para a cultura da
paz.
Todavia,
não basta que haja vontade de pensar e intervir, é necessário que as elites
governantes moçambicanas abandonem o espírito autoritário e antidemocrático que
tem caracterizado a política moçambicana, e pautem por um espirito democrático
e de paz, garantindo a liberdade de pensamento e de expressão, para que não
voltem a acontecer casos como Cardoso, Siba-Siba, Muxúngue e Cistac. Platão diz
que a filosofia só terá prestígio num governo adequado. O governo adequado para
Platao é aquele que respeita esta profissão (a filosofia) (PLATÃO, 1949: 272).
O
governo moçambicano terá que promover uma sociedade
aberta[1]
(Popper) tomando, antecipadamente, a consciência de que, a filosofia e a paz não
podem existir sem a liberdade, pois elas mesmas já são a manifestação da
liberdade, liberdade de pensar diferente e dizer sem rodeio nem intimidações o
que se pensa; liberdade pessoal, de viajar, de viver, etc. Fora disso, a história
de Moçambique caracterizar-se-á por guerras ininterruptas.
Por
isso, a filosofia deve sair da mente, dos escritórios, das salas de aulas e das
bibliotecas e deve adquirir o hábito de passear pelos arredores da polis. Mas este passear deve ser um
passear metódico, isto é, um passear que sirva de caminho para desvendar os
problemas sociais e denunciá-los. Um passear que, na esteira de Luckesi,
consideraríamos um método para inventariar os valores que explicam e orientam as
nossas vidas, e a vida da sociedade (1), para, num segundo momento, submetê-los
à critica, e por fim, num terceiro momento, fazermos uma construção critica dos
valores que sejam significativos para orientar as nossas vidas (a igualdade,
solidariedade, a liberdade, a justiça e a paz são os valores que devem orientar
a vida dos moçambicanos). Um passear acompanhado de reflexão e que, através
dessa reflexão, nasça a acção. A reflexão e acção (praxis) deverão conjugar-se para a transformação da sociedade. O
objectivo será o de vigiar constantemente a sociedade denunciando qualquer
tendência anti-social, no sentido de garantir que a justiça, o bem comum e a paz
sejam consolidados. Para tal, a escola terá que passar a ser o lugar onde o
debate sobre os problemas histórico-sociais (Freire) se realiza, e a filosofia
será uma das armas para a resolução desses problemas. A educação terá como uma
das nobres tarefas, a de inculcar a cultura de diálogo e, por conseguinte, de
paz no espirito dos moçambicanos, pois que para Ngoenha “cada um de nós tem uma
parte de bomba de agressividade dentro de si, não por razões naturais ou de
instinto, mas pela má educação à violência” (NGOENHA, 2014: 150).
Bibliografia
ARENDT,
Hannah. O que é Politica. 3ª ed. Rio
de Janeiro, Bertrand Brasil, 2002.
CHAMBISSE, Ernesto Daniel et al. “ A
Emergência do Filosofar”: ‘Filosofia 11ª e
12ª Classes.’1ª ed. Maputo, Moçambique Editora, 2004;
CHAUI,
Marilena. Convite a Filosofia. São
Paulo, Ática, 2000.
FREIRE,
Paulo. Pedagogia do Oprimido. 11ª Edição. Rio de Janeiro; Paz e Terra, 2005.
LUCKESI,
Cipriano. Filosofia da Educação. São
Paulo; Cortez, 1994.
MARX,
K. H. & ENGELS, F. A Ideologia Alemã.
s/c. Ridendo Castigat Mores, 1999.
NGOENHA,
S.E. Os Tempos da Filosofia: Filosofia e
Democracia Moçambicana; Maputo, Imprensa Universitária, 2004.
NGOENHA,
S.E. Intercultura, Alternativa à
Governação Biopolítica? Maputo; Publifix, 2014.
PLATÃO.
A República.12ª edição. Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian, 1949.
POPPER.
Karl Raimundo. A Sociedade Aberta e Seus
inimigos: A Preamar da Profecia Hegel, Marx e a Colheita. 2º vol. São
Paulo, Itatiaia, 1974.
[1] Para
Karl Popper (1974) “sociedade aberta” é sociedade democrática liberal que cria
condições para o exercício da liberdade de crítica.
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