sexta-feira, 29 de setembro de 2017

A FILOSOFIA UBUNTU E CONCEPÇÃO OPERACIONAL DE JUSTIÇA

Introdução  
O tema do trabalho “Ubuntu e a Concepção Operacional da Justiça” aparece como uma tentativa de busca duma concepção originalmente africana da justiça. Por concepção originalmente africana da justiça entendemos àquela baseada na experiência cultural dos povos africanos, e o ubuntu é o que de comum as diversas culturas africanas possuem.
Desta forma, o artigo procura, de forma geral, analisar conceptualmente o ubuntu nas suas diversas formas de manifestação com vista à busca do seu conceito operativo de justiça. Dado que o ubuntu é uma forma de vida africana na qual acredita-se que a pessoa para ser pessoa depende de outras pessoas (umuntu ngumuntu ngabantu), a maneira como essa dependência se manifesta no âmbito da justiça torna-se pertinente para repensarmos os sistemas de justiça vigentes no mundo de globalização que atravessamos a partir da realidade histórica e sócio-cultural de África. Especificamente, o objectivo é identificar as origens do conceito ubuntu; explicar os seus diversos significados e, por fim, inferir, a partir de certos pensadores africanos, o conceito operativo de justiça em ubuntu.

O trabalho resulta da pesquisa recomendada no Seminário IV do Curso de Mestrado em Educação/Ensino de Filosofia, descrito com o título: Ubuntu: Conceito Operativo de Justiça com vista a avaliação do mestrando neste Módulo. O tema é relevante na medida em que poderá dar um contributo significativo para o aperfeiçoamento da concepção de justiça num mundo globalizado em que o que mais se reclama é esta virtude (a justiça), em virtude de várias turbulências, tais como, criminalidade, guerras, escravatura sexual, tráfico de órgãos humanos, corrupção, etnocídio, etc. Esperamos, também, com este trabalho podermos dar um grande contributo para a compreensão do conceito de ubuntu, no geral, e da sua concepção operativa da justiça, em particular, dado que no nosso país é escasso o material que versa sobre este assunto por ser um tema abordado maioritariamente pelos países africanos anglófonos e não lusófonos, como é o caso do nosso Moçambique.

No que tange ao procedimento metodológico, o trabalho resulta da revisão bibliográfica que consistiu na busca e leitura de obras que versam sobre o ubuntu, ou no que dá no mesmo, o ubuntuismo, tendo tido maior enfoque nas obras de Augustine Shutte e José P. Castiano. Operacionalmente, recorreu-se a análise conceptual que consistiu na desconstrução e desdobramento do conceito ubuntu com vista a compreensão ampla e profunda do mesmo.
O trabalho está dividido em dois capítulos, cujo primeiro aborda o conceito de ubuntu partindo do seu significado etimológico para o seu significado político como um pontapé de entrada ao conceito operativo de justiça, já no segundo capítulo. Por fim, encontramos a conclusão, onde fazemos uma análise crítica sobre o conceito operativo de justiça em ubuntu.


DA CONCEPÇÃO ETIMOLÓGICA AO SIGNIFICADO POLÍTICO DE UBUNTU

No presente capítulo, procuramos explicar as origens do conceito ubuntu e as suas diversas formas de manifestação com vista à maior compreensão do mesmo.

1.1 Conceito de ubuntu
Segundo Augustine Shutte o conceito de Ubuntu foi desenvolvido há seculos na cultura tradicional africana. Essa cultura era pré-letrada, pré-científica e pré-industrial. Contudo, Ubuntu era expresso nas cancões e estórias, nos costumes e instituições das pessoas (Shutte, 2001: 9); para ele a palavra Ubuntu significa humanidade. A humanidade neste ponto é tomada no sentido de “ser ser humano”, isto é, a qualidade necessária para que uma pessoa seja considerada um ser humano (Ibidem: 2). A concepção africana da humanidade não é materialista. O ser humano não pode ser compreendido como se fosse um objecto, pois para além da parte material é também composto pela parte espiritual. Em África, o conceito de humanidade observa ambas as dimensões espiritual e material, e particularmente, como energia vivente em relação com as outras energias viventes (o que Tempels chamou de força vital).

A concepção africana da humanidade também não é individualista, como o são o liberalismo e o capitalismo, tentando proteger a liberdade do indivíduo separando-o da comunidade. Mas também não é colectivista como o são o comunismo, tornando o individuo como parte da comunidade apenas. Na concepção africana a pessoa depende das outras pessoas para ser pessoa (Umuntu ngumuntu ngabantu). É aqui onde se encontra o sentido de Ubuntu. É pertencendo à comunidade que nos tornamos nós mesmos. A comunidade não se opõe ao indivíduo, não o engole, ela o capacita a se tornar o único centro da vida comum (Shutte, 2001: 9).

1.1 O sentido ontológico do Ubuntu
Na vertente metafisica, segundo Ramose citado por Castiano, a palavra Ubuntu deriva da língua Zulu e é composta por duas palavras, o prefixo ubu e  a raiz ntu. O prefixo ubu exprime a generalidade do ser, o ser antes da sua manifestação, determinação ou especificação. O ubu determina-se ou deixa-se determinar no ntu (manifestação do ser). Ontologicamente não há nenhuma separação entre o ubu (ser) e ntu, o que existe é uma separação linguística dos termos(Castiano, 2010: 156).

Castiano diz que ubuntu é a categoria epistemológica e ontológica fundamental do pensamento dos povos bantu” (Idem).

O ubuntu tem como suporte de significação o umuntu (a determinação ou concretização) e o umuntu só pode ser reconhecido como tal se tiver o ubuntu. O umuntu é um ser determinado, isto é, o ser humano, ser de acção, enquanto um ser politico, religioso e sobretudo entidade moral (idem).

Segundo Shutte, a tradição africana vê o universo como um universo de interacção de forças, no qual todos os seres neles existentes, animados e inanimados (plantas, animais, pedras, as pessoas, etc) são forças interagindo uma a outra. Estas forças não são entendidas no sentido materialista, como simplesmente força física, mas também como presentes em nossas emoções e ideias. Contudo, elas não são nem simplesmente espirituais. Estas estão também presentes nos nossos músculos e sangue (Shutte, 2001: 21-22).

Não sendo materiais, nem puramente espirituais, as forças que compõem o ser são vistas como vitais, energia vivente, forças da vida. As pedras também têm força de vida como os animais, a diferença consiste apenas na quantidade de força que uns possuem em relação aos outros; por exemplo, os animais possuem maior força que as pedras, e os homens possuem maior força que os animais. Portanto, o universo é visto como um sistema hierárquico de forças, no qual Deus representa a força criadora e fonte de todas as forças, de seguida encontramos os antepassados que tem maior força que os homens viventes, e estes que os animais, e os animais que as plantas, e as plantas que as pedras (Idem).

Esta forma de conceber o universo é que vai influenciar a concepção ubuntuista da pessoa e da ética porquanto determina a maneira como nos vimos a nós mesmos. Se o universo é uma hierarquia interactiva de forças, então o nosso “eu” resulta e é expressão de todas as forças que agem sobre ele. A pessoa é a soma total dessas forças interactivas. Entretanto, Shutte afirma que temos que aprender a ver a nós mesmos a partir de fora, na nossa aparência, os nossos actos e relações, e no ambiente que nos cerca, pois que é a manifestação das forças vitais que nos torna sermos o que somos (ibidem: 23).

Desta concepção metafisica do ser, brota a concepção africana da pessoa: a pessoa só é pessoa somente em relação com as outras pessoas.

Setiloane citado por Shutte, afirma que a essência do ser é participação na qual os homens estão interligados uns aos outros. O ser humano não é apenas uma força vital, mas uma força vital em participação (Setiloane apud Shutte, 2001: 23).

Em suma, a pessoa em África não apenas é um ser com os outros (Heidegger), mas também a partir dos outros, pois que são os outros que reflectem a sua entidade, identidade e personalidade.

1.2 O sentido epistemológico do Ubuntu
A epistemologia africana difere em alguns aspectos da epistemologia ocidental. A epistemologia ocidental acredita que a epistemologia é ciência que estuda a apropriação das qualidades do objecto pelo pensamento. Isto pressupõe a existência do objecto a ser conhecido e do sujeito que conhece e, portanto, a existência da experiência ou sensação e da razão como faculdades do conhecimento científico. Ora, segundo Kwame Gyekye, a epistemologia africana não desconhece o conhecimento sensitivo nem racional e acredita também nas ideias inatas. Estas conclusões, Gyekye evidencia através de provérbios do seu povo Akan. Contudo, para além do conhecimento racional e experimental, afirma que o que essencialmente caracteriza a epistemologia africana é a mediunidade, adivinhação, e feitiçaria. Estas três formas de adquirir o conhecimento diferem quanto à forma se comparadas em África e outros continentes. Em África são modos físicos e vulgares de conhecer que podem ser encontradas em todas as comunidades. Acredita-se que estas formas de saber são inatas e não precisam da experiência para a sua aquisição. Porém, são transmitidas por herança, ou melhor, incarnação do espirito médium ou do feiticeiro aos seus descendentes.

Segundo Ramose interpretado por Castiano, na vertente epistemológica, o ubu tem condição da sua existência o umuntu. Portanto, o termo umuntu está estritamente ligado ao ubuntu, para expressar as condições da existência do ubuntu. Isto é, toda a acção e comportamento do ser humano é uma tentativa de relevar e revelar o ubuntu (Ramose apud Castiano, 2010: 157).

É a partir desta ideia que, segundo Castiano, se pode compreender a expressão “Eu sou porque tu és” que significa que a nossa existência como indivíduos reflecte o ser da nossa comunidade, ou melhor, dos membros da nossa comunidade. A nossa humanidade só se realiza e manifesta-se no reconhecimento da humanidade dos outros. “Portanto, um comportamento humano é a base das relações entre os homens” (Castiano, 2010: 158).

1.3 O sentido ético de Ubuntu 
A ideia da liberdade na Europa significa fazer escolhas deliberadas, ser autodeterminados, ser completamente livres de influências dos outros que de nós mesmos. Esta ideia de liberdade tem sua origem na concepção grega do homem como um animal racional, pois sendo o homem animal racional é livre porquanto tem a capacidade escolher e decidir que vida deseja levar.

A concepção do homem como um ser comunitário em África representa a essência do conceito de humanidade. Esta concepção entende-se na máxima umuntu ngumuntu ngabantu (a pessoa é pessoas através de outras pessoas). O que significa que a pessoa depende das relações pessoais para exercitar, desenvolver e cumprir a sua humanidade.
Na vertente ética, o eu sou porque tu és[1], exprime o modo como os homens se comportam na sociedade, aliás que as pessoas devem se comportar humanamente, o que implica respeitar o outro, ser clemente, paciente, ter um comportamento são e impecável, ser altruísta e solidário. No ubuntu, quando se diz “aquele é o homem” pretende-se dizer que é eticamente são, que respeita a humanidade dos outros, que escuta os outros, “é paciente, cultiva o perdão e a compreensão entre os homens” (Idem).

O ubuntuismo advoga que não basta ser ser humano, é preciso manifestar essa humanidade exprimindo as qualidades humanas aos outros. O ser humano deve manifestar o seu ubuntu.

Segundo Brodryk citado por Castiano existem valores fundamentais do ubuntuismo e outros associados. Os valores fundamentais são o humanismo (valores associados: calor, tolerância, compreensão, paz, humanidade), carinho (valores associados: oferta incondicional, redistribuição, abertura, atitude de “mão aberta”) respeito (valores associados: cometimento, dignidade, obediência, ordem, predisposição para cumprir as normas sociais) e compaixão (valores associados: amor, coesão, informalidade, perdão, espontaneidade) (Brodryk apud Castiano, 2010: 165).

Um outro valor cultivado no Ubuntu é o perdão, o que pressupõe o exercício de simpatia e empatia para o outro, o perdão é um dom divino e tem como fundamento a imperfeição humana: temos que perdoar porque todos nós cometemos erros, todavia temos que aprender com os nossos erros de modo a não repeti-los (Idem).  É o perdão que constitui o valor de justiça fundamental em na filosofia ubuntu.

1.4  O sentido político do Ubuntu
Segundo Shutte, desde que as pessoas passam a viver em comunidade e essa comunidade se encontra bem unida e organizada, a lei aparece com sua forma mais directa de expressão da vontade social dessa mesma comunidade, e portanto, introdu-la à vida política. A esfera da política é esfera da autoridade e a autoridade tem que existir para garantir o cumprimento das leis (Shutte, 2001: 181).

Na filosofia Ubuntu, a comunidade politica e o governo é expressão natural e essencial da natureza humana. Não é convencional ou, como quer Shutte, artificial. Por sociedade política natural refere-se ao estado político que se origina naturalmente, através dos esforços racionais obscuros, que exprimem uma ordem racional. O corpo político tem carne e sangue, instintos, paixões, reflexos, estruturas psicológicas inconscientes e dinamismo, todos sujeitos a coerção legal, para comandar uma Ideia ou decisões racionais (Idem).

A justiça é a primeira condição existencial desse corpo político, mas a amizade é que é a sua verdadeira fonte e forma de vida. Tem como devoção as relações humanas, de amor mútuo e assim como o senso de justiça de uns para com os outros.

O governo na concepção ubuntu, não é visto numa perspectiva mecanicista, tal como o é um num sistema burocrático mas sim numa perspectiva de relação interpessoal entre os governantes e os governados. Contudo é um relacionamento acompanhado de liberdade e responsabilidade, o que Shutte chamou de princípio subsidiário. A partir de cima para baixo significa, este principio, suportar mas não interferir, a partir de baixo para cima significa obediência e cooperação. Se Ubuntu politicamente significa respeitar a liberdade das pessoas, então necessariamente significa também exigir a sua responsabilidade (Idem).

O Ubuntu advoga que os governantes não devem ser eleitos como políticos mas como pessoas, isto é, através avaliação do seu comportamento e das suas acções na vida quotidiana e não devemos nos deixar convencer por vás retóricas enganadoras. Não devemos escolher um governante que não possamos confiar na vida privada, isto pressupõe o estudo das suas vivências passadas de modo que possamos conhecer o seu carácter. O fim último do governo é a promoção do bem comum para a comunidade (Ibidem: 183).

Castiano afirma que, na vertente politica, o ser ser humano é manifestar ubuntu aos outros ser humanos, respeitando-os, ser paciente, altruísta e solidário, significa que, politicamente, o soberano tem o povo como fonte e justificação da sua acção. O soberano deve ser julgado a partir do seu ubuntu, ou seja, da forma respeitosa, carinhosa, afável e desinteressada como ele trata os seus súbditos (Idem). Isto implica que, no ubuntu não se justifica que o soberano aja de forma autoritária, opressiva e desumana para com os seus súbditos. O ubuntu torna-se a fonte de legislação e governação da polis.

2. UBUNTU E A CONCEPÇÃO DE JUSTIÇA

Neste capítulo, que é o coração do nosso trabalho, inferimos a concepção operacional de justiça em ubuntu a partir de certos pensadores africanos.

2.1 Ubuntu e a concepção operativa de justiça
Segundo Castiano as qualidades éticas defendidas em nome do ubuntu, constituem o alicerce para o princípio de uma nova forma de justiça, da jurisprudência tradicional africana na qual a preocupação central não é a retribuição ou a punição do infractor, mas sim e no espírito ubuntu, curar os males, focalizar as iniquidades, as desigualdades, enfim a restauração (justiça restaurativa) das relações dos valores humanos quebrados. É um tipo de justiça que procura reabilitar a vítima e o culpado; a este último, compreende-se, deveria ser-lhe dada a oportunidade de ser reintegrado na comunidade que vive, com os seus actos bárbaros no passado (Castiano, 2010: 167).

Este tipo de justiça fora aplicado após a queda do sistema segregacionista sul-africano, apartheid, no sentido de buscar-se a reconciliação entre os opressores e os oprimidos. A condição era que os opressores, torturadores confessassem publicamente os seus crimes contra a humanidade e que pedissem perdão. Para tal foi instituída uma comissão da verdade e reconciliação que gerisse esse processo. A razão desse tipo de justiça restaurativa tem a ver com a consciência ubuntu de que o opressor é humano e como tal erra, então precisa de ajuda dos outros para recuperar a sua humanidade perdida.

Ngoenha vê o conceptualizador e executor desse processo Desmond Tutu. Tutu por meio da tradição do antigo testamento de retornar os ofensores à justiça e ao bem comum, construiu o seu pensamento de reconciliação após o sistema de apartheid. Não só, mas também foi inspirado teologicamente pela Black Theologie of Liberation dos EUA percorrida por James Cone.

A justiça restaurativa segundo Tutu citado por Ngoenha significa reparação. Todavia, reconhece-se a diferença entre o conceito de reparação com o da compensação. A diferença consiste em que reparação consiste em reconhecer publicamente os males cometidos através da confissão pública do perpetrador, enquanto compensar consiste na retribuição quantitativa dos males cometidos pelo infractor em benefício da vitima. O que, segundo Ngoenha, este argumento não é convincente para Derrida (Ngoenha e Castiano, 2014: 69-73).

2.2 Ubuntu e a Concepção de justiça no contexto actual (da globalização)
Segundo Nyaumnwe e Mkabela citados por Castiano (2010: 168) o ubuntu tem duas dimensões directivas: uma descrição factual de estar com os outros e um código de conduta que visa conjugar o respeito e a compaixão para com o outro. O maior valor da filosofia moral ubuntu consiste na sua capacidade de criar a cooperação e a unidade entre as pessoas.

Nyaumwe e Mkabela procuram mostrar através da maxima “umuntu ngumuntu ngabantu” que o ubuntu pode resolver os problemas modernos (Idem). Além disso, para além do ubuntu baseado na Ética, propõem um ubuntu baseado na filosofia social, que não se limite no tradicionalismo, mas cujos valores tradicionais sejam incorporados no discurso sobre a África moderna. Para a sua concretização, o primeiro passo, seria que os jovens tenham a oportunidade de apreciar os valores culturais africanos de modo que se sintam encantados, façam as suas escolhas e orientem o seu comportamento com base nesses valores: o humanismo, o colectivismo, a cooperação, o carinho para com o outro e o respeito. Para estes pensadores, os valores democráticos defendidos nos tempos de hoje estão em consonância com os valores e as práticas tradicionais nas comunidades africanas. Estes valores democráticos são: a inclusão, a negociação, a transparência e a tolerância. O exercício da palavra nas comunidades tradicionais promove a capacidade de buscar consensos para decisões colectivas, embora esse consenso não se baseie na maioria como acontece no sistema democrático. O consenso nas comunidades tradicionais africanas visa maior coesão social, daí a importância destes valores para a democracia.

Nyaumwe e Mkabela interpretados por Castiano, “acham que se deve restaurar a filosofia moral ubuntu para mostrar as gerações mais jovens os benefícios do ubuntu por forma a poderem começar a apreciar a contribuição da filosofia moral africana para com a humanidade e misturar estes com os aspectos da cultura ocidental”. Para tal objectivo a educação tem o papel de educar no espirito ubuntu (Nyaumwe e Mkabela apud Castiano, 2010: 171).

Ngoenha (2011), por sua vez, critica a globalização vigente no mundo moderno, fruto do neo-liberalismo que ganha a sua consolidação filosófica com a profecia fukuyamiana do “fim da história”. O “fim da história” significava a “uniformização axiológica e cultural do mundo”. Esta uniformização teria consequências económicas e políticas mundiais, sobretudo, na questão da justiça. E o problema que se deve tentar resolver glocalmente nos dias de hoje em todas as sociedades é a questão da justiça.

Neste sentido, a justiça restaurativa sul-africana aparece como um contributo africano jus-paradigmático no debate de ideias que ultrapassam a dimensão africana, depois dos paradigmas libertários (políticos, filosóficos, culturais e económicos) versados apenas em África. Todavia, Ngoenha levanta questões críticas que precisam ser repensadas no contexto da concepção da justiça ubuntu, todas elas versadas mais ou menos na questão das desigualdades sociais e económicas que esta teoria da justiça não foi capaz de pensar a ultrapassar, porquanto tinha a preocupação a reconciliação apenas e não foi traduzido para um sistema político ético-jurídico.


Conclusão

Ubuntu: conceito operacional de justiça ou cobardia?
A concepção restaurativa da justiça ubuntu advoga que a justiça não será punitiva mas sim de reparação, na qual o perpetrador dos crimes contra a humanidade ou qualquer ofensa é levado a confessar publicamente os seus pecados contra a humanidade diante da vítima como meio de adquirir o perdão e ser reintegrado na comunidade e, no entanto, recuperar a sua humanidade que se resume no saber ser com os outros. Este processo foi possível através da instituição de uma comissão da verdade e de reconciliação na África do Sul pós-apartheid.
Para mim, esta teoria ou prática da justiça não foi vista de forma geral do que deve ser uma teoria da justiça, pois ela só contemplou os crimes políticos que geralmente são guiados pela lei de amnistia, lei na qual os crimes políticos são susceptíveis de perdão. A grande preocupação da justiça ubuntu é a reconciliação. Mas a vontade de reconciliação sul-africana é por mim vista como um acto de cobardia ou medo da liberdade, dado que esta implica a responsabilidade de conduzir as suas vidas e destinos. Depois de todas as barbaridades cometidas por um dos sistemas mais desumanos da história de Africa, não penso pertinente uma simples confissão pública dos pecados e reconciliação suficientes para sanar todas as feridas que ficaram dentro dos corações dos sul-africanos e de África, como alguma vez disse o venerado líder finado do partido anti-apartheid Nelson Mandela: “podemos perdoar, mas esquecer não depende de nós”. Mas se alguém não esqueceu significa que não perdoou, pois perdoar significa não nutrir mais mágoas nem ódio contra o ofensor. O perdão só é possível quando cientes de que a justiça tenha sido feita. Os sul-africanos não são tão misericordiosos o quanto o ubuntu procura defender, basta lembrar casos da xenofobia contra os próprios irmãos de África e a criminalidade na África do Sul. O perdão e a cobardia são coisas diferentes. O perdão tem seus limites e quando se ultrapassa a justa medida transforma-se ou em cobardia ou em crueldade.
Para Tinyiko Maluleke citado por R. Neville Richardson, a Comissão da Verdade e da Reconciliação, tratou superficialmente as dolorosas feridas do povo sul-africano e não se preocupou pela cura dessas feridas, na medida em que as vítimas que submeteram as queixas ao sistema segregacionista não obtiveram a reparação dos danos por ele causados. Para Maluleke é inaceitável que um perpretador dos piores crimes contra a humanidade se veja instantaneamente amnistiado e a passear livre e aproveitando de tudo o quanto os seus actos bárbaros tornaram possível adquirir, enquanto as suas vítimas permanecem afogadas na miséria e desgraça. Maluleke acredita que a Comissão da Verdade monopolizou o termo “reconciliação” dando-lhe uma forma individualista-liberal que defende uma igualdade ilusória (MALULEKE apud RICHARDSON, 2008: 73) .
Com isso, não pretendo defender que os sul-africanos tivessem que esquecer o ubuntu e retaliar contra os brancos opressores, mas sim que se devia ter pensado numa conjugação entre a justiça punitiva, a justiça restaurativa e justiça compensativa, dependendo a sua aplicação da natureza dos crimes cometidos pelo sistema segregacionista.
Para mim, admitir que a justiça restaurativa é viável no contexto africano é assumir a fraqueza do africano em ser oprimido e colonizado, pois basta o opressor confessar publicamente os seus crimes e jurar não mais praticá-los para que seja perdoado. Portanto, a que se repensar o sistema jurídico ubuntu, extraindo-se os seus aspectos positivos, é o caso da restauração, e rejeitando os seus aspectos negativos, a limitação na simples reconciliação.








Bibliografia
CASTIANO, José P. Referênciais da Filosofia Africana: ‘Em Busca da Intersubjectivação’. 1ª ed. Maputo, Ndjira, 2010;
GYEKYE, Kwame; An Essay on African Philosophical Thought: The Akan Conceptual Scheme. Philadelphia, Temple University Press, 1995;
NGOENHA, S. e CASTIANO, J.P. Pensamento Engajado: Ensaios sobre Filosofia Africana. Maputo, Educar, 2011.
RICHARDSON, Neville R. Reflections on Reconciliation and Ubuntu. In: Persons in Community. University of Kwazulu-Natal/ University of Kwazulu-Natal Library, 2008.
SHUTTE, Augustine. Ubuntu: An Ethical for a New South Africa. Cape Town, Cluster Publications, 2001.






[1] Não concordamos com esta interpretação de Ubuntu, pois considera que a pessoa é produto da outra pessoa, ou das relaçõoes interpessoais, o que ao nosso ver não constitui a realidade da pessoa africana, no geral, muito menos do ubuntu, em particular. Para nós, a pessoa é resultado da comunidade ou da colectividade humana de onde é oriunda, portanto a expressão mais adequada para interpretar a pessoa no ubuntu seria “eu sou, porque nós somos” como referenciou John Mbiti “I am, because we are”, ou como a própria máxima ubuntuista sul africana referencia “umuntu ngumuntu ngabantu” (a pessoa é pessoa através de outras pessoas).

domingo, 24 de setembro de 2017

De uma Democracia Representativa a uma Democracia Liquida em Moçambique: imperativos e desafios

De uma Democracia Representativa a uma Democracia Liquida em Moçambique: imperativos e desafios


Resumo
O presente artigo reflete sobre a possibilidade de instauração da democracia liquida, partindo da análise dos problemas que enfermam a democracia representativa em Moçambique. Nele defendemos que o que enferma a democracia representativa em Moçambique é: a falta da consciência política dos cidadãos moçambicanos, a existência de sociedade civil fraca e a ineficiência do próprio sistema representativo. Como solução alternativa a estes constrangimentos à verdadeira democracia, propomos a instauração da Democracia Líquida. Porém, para que tal instauração seja viável propomos primeiramente educação cívica a democrática aos cidadãos moçambicanos para o desenvolvimento da consciência politica e o fortalecimento da sociedade civil moçambicana como imperativos; e o desenvolvimento económico e a massificação das Tic’s como desafios. O objectivo é contribuir para a consolidação da democracia e do poder do voto dos cidadãos em Moçambique. Para a realização deste artigo, servimo-nos revisão bibliográfica, cujas técnicas empregues consistiram da reflexão e análise críticas nas quais buscamos construir premissas e conclusões através do uso raciocínio, negando como as coisas são e correm e buscando soluções alternativas.

Palavras-chave: Democracia representativa, sociedade civil, consciência política, Democracia líquida, educação, desenvolvimento económico. 





1.    Democracia Representativa em Moçambique: fracassada ou sistema ineficiente?

Após uma guerra fratricida e cruel que perdurou por 16 anos, finalmente em 1994 os moçambicanos puderam ter o direito de votar nos seus representantes políticos (o presidente da Republica e parlamentares) que pudessem representar os seus interesses na Assembleia da República. Abria-se nesta época uma nova fase política em Moçambique: época da democracia representativa, da assembleia multipartidária. Tal representatividade implica que os moçambicanos tinham que eleger candidatos que, com o mínimo de confiança, fossem capazes de trazer prosperidade, paz e bem estar-social. Prosperidade num país devastado pela guerra, com poucas escolas, poucos hospitais, pontes e fábricas destruídas, com elevado índice de analfabetismo e desemprego, numa pobreza absoluta e endividado ao extremo; paz num país onde ainda se ressentiam as sequelas da guerra tanto do ponto de vista daqueles que a protagonizaram como daqueles que a sofreram; bem estar-social num país caracterizado pelo desemprego, pela agricultura de subsistência insustentável, num país que assistia um sentimento tribal, em que quase todos os privilégios económicos e sociais estavam localizados no sul (Maputo).

O governo instaurado após as primeiras e segundas eleições pelo menos pôde trazer-nos e conservar a paz, mas, apesar disso, após os dois mandatos da presidência de Chissano os moçambicanos não conseguiram sair do mapa da pobreza absoluta, do endividamento insustentável e nem da corrupção. O que de certa forma criou certa insatisfação e resignação ao povo. Por conseguinte, as eleições que se seguiram foram marcadas por abstenções em massa, dado que o povo encarnou a tese de que os candidatos não eram eleitos para representar os seus interesses mas sim ascender ao poder para atender aos benefícios próprios, como regalias económicas e corrupção.

Em 2004, com a fim dos mandatos de Chisssano os moçambicanos foram mais uma vez as urnas votar num novo candidato da Frelimo, Armando Guebuza, na esperança de que este pudesse trazer os seus velhos sonhos (a prosperidade, a paz e o bem-estar social), mas tudo desfechou-se na mesma, ou se calhar na pior situação. As consequências mais graves desta eleição foram: a não transparência nas eleições e governação, a eclosão de mais um conflito militar (Muxúngue), a perseguição política e as dívidas ocultas, sobretudo no seu segundo mandato. Isto deixou o país na situação do país mais endividado do mundo e portanto, com vários problemas sociais.

Como alguma vez afirmou José Paulino Castiano numa entrevista: “Moçambique está longe ainda de ser um país democrático[1]”, mas a questão que se coloca é: o que enferma e enfraquece a democracia em Moçambique? Ou por outras palavras, porque Moçambique não consegue consolidar a sua democracia?

Em relação a esta questão, nós constatamos os seguintes problemas que podem servir de resposta: a falta de consciência política da parte do povo moçambicano, a existência de uma sociedade civil muita fraca e o sistema politico ineficiente.

1.1 A falta de consciência política do cidadão moçambicano
A insatisfação politica que reina na sociedade moçambicana é, desde a primeira república democrático-representativa, generalizada. Enquanto isso os moçambicanos ainda dormem, manifestando uma fraqueza irritante no desenvolvimento da consciência politica e exercício da cidadania.

Toda a participação política do cidadão depende necessariamente da sua consciência politica. A consciência política tem um vínculo umbilical com a participação politica de tal maneira que não é possível uma existir sem a outra. Logo, se um individuo não participa nas decisões políticas implica que não desenvolveu ainda a consciência politica, ou seja, é um analfabeto político (Bertold Brecht).

Quando os membros de uma determinada sociedade não tem consciência política nem se interessam pelas decisões e assuntos políticos, ficam impossibilitados de participar de forma consciente e responsável na administração da sua polis, pois que encontram-se desprovidos de instrumentos que lhes possibilitem a tal participação. Um verdadeiro cidadão, qualquer que seja, Não pode ser considerado como tal se não participa de forma crítica, construtiva e transformadora da realidade social e politica que o circunda. Portanto, só se é cidadão quando se tem a consciência da cidadania como um imperativo existencial de todos, como afirmou Aristóteles:

“Não é a residência que constitui o cidadão: os estrangeiros e os escravos não são cidadãos, mas sim habitantes […] o que constitui o cidadão, sua qualidade verdadeiramente característica, é o direito de voto nas Assembleias e de participação no exercício do poder público em sua pátria”” (ARISTÓTELES, s/d., p. 31).

Verdadeiro cidadão só pode ser encontrado numa verdadeira democracia e uma verdadeira democracia só pode existir onde encontramos o verdadeiro cidadão.

Na esteira de Sandoval, entendemos por consciência política a composição de dimensões sócio-psicológicas de significados e informações inter-relacionadas que permitem indivíduos tomar decisões quanto ao melhor curso de ações em contextos e situações políticas específicas (SANDOVAL, 2001:185).

Este politólogo define consciência política tendo em conta sete (7) dimensões psicológicas do indivíduo que são: identidade coletiva; crenças, valores e expectativas sociais; interesses coletivos e adversários antagônicos; eficácia política; sentimento de justiça e injustiça; vontade de agir coletivamente; e metas e repertórios de ações (Idem).

Segundo Sandoval (1994: 34), existem mecanismos de controlo social que impedem o desenvolvimento de uma consciência crítica, tais mecanismos aparecem com o único papel de manter a realidade social e política como ela está e perpetuar a dominação dos mais fortes pelos mais fracos. Estes mecanismos podem encontrar-se nas noções culturais e nas restrições da vida cotidiana.

As noções culturais resultam de uma construção histórica que tende a estaticizar e dogmatizar os valores e crenças sociais de modo a tornar as relações sociais e a própria natureza da sociedade aparentemente naturais. Nesse aspecto, são mecanismo limitantes, questões ligadas a estratificação social, hierarquia social, desigualdade social, etc (Idem). Estes mecanismos podem ser elementos-obstáculos no desenvolvimento de uma consciência politica e podem actuar como mecanismos de controle social. Por exemplo, a tradição que ainda reina em Moçambique de que só os mais velhos (também pode aplicar-se aos mais cultos, mais ricos, mais socialmente posicionados, etc) são sábios e, portanto, detentores da razão; ou a discriminação social e política das mulheres e jovens, segundo a qual estes não tem dom (no caso das mulheres) e experiência (no caso dos jovens) para fazer ou participar nos assuntos políticos, são alguns exemplos.

As restrições da vida cotidiana impostas aos indivíduos também funcionam como mecanismo de controle, por exemplo, aspectos limitantes que ocupam o tempo dos indivíduos, tais como hierarquia de valores e critérios sociais, espontaneidade e imediatismo das decisões, economicismo e pragmatismo, são alguns dos elementos da vida cotidiana que nos roubam o tempo para reflectir e fazer uma analise critica sobre a realidade social e politica.

Se, como afirmam Marx e Engels (1999: 34) “a consciência é pois um produto social”, a falta de consciência politica nos moçambicanos pode ser explicada por dois principais factores: a pobreza absoluta e taxas elevadas de analfabetismo.

A pobreza absoluta queima o tempo de reflexão sobre a vida e sociedade na procura de formas e meios de sobrevivência, pois para que o homem comece a reflectir e a mover a história é preciso que se liberte das atividades cotidianas que garantem a subsistência e cultive o ócio (Condorcet), ou, por outras palavras, é preciso primeiro satisfazer as suas necessidades de subsistência para se dar tempo em reflectir com profundidade (Hobbes, Descartes). Por outro lado, o elevado índice de analfabetismo impossibilita o desenvolvimento de consciência política, pelo facto de a educação ser um elemento fundamental da mudança na medida em que inculca nos indivíduos de instrumentos e informações necessários para que haja transformação.

Sem a educação formal para a cidadania e democracia, os indivíduos encontram-se desprovidos de ferramentas essenciais para o seu engajamento politico.
Aliás, perguntam com sarcasmo Emil O. W. Kierkegaard e Bo Tranberg: como é que um povo politicamente analfabeto, que ignora o curso da política, da economia e da sua sociedade poderá eleger cidadãos competentes para representar os interesses da nação? (KIERKERGAARD & TRANBERG, 2014: 1).

 A questão que nós colocamos, é: como desenvolver a consciência politica aos moçambicanos, de tal maneira a poderem participar nas decisões políticas?
Poderemos tentar responder a esta questão quando apresentarmos os imperativos e desafios para a instauração da Democracia Líquida em Moçambique.

1.2 De uma sociedade civil fraca a uma sociedade civil forte
Para os filósofos contratualistas (Hobbes, Locke, Rousseau e Kant) sociedade civil corresponde ao Estado político (Estado civil), pois que resulta do contrato estabelecido no estado natural. Assim, entende-se que sociedade civil é o estado regulado por leis e por um poder soberano enquanto que o estado natural é regulado pelas leis da razão (ou mesmo da natureza).

Três principais filósofos discutiram sobre o conceito de sociedade civil no sentido moderno do termo: Hegel, Marx e Gramsci. Hegel foi o primeiro filósofo a usar o termo sociedade civil para denominar não mais ao Estado político, mas sim ao estado pré-politico, ou seja, para denominar ao Estado que dá origem e condiciona a sociedade política. A sociedade civil constitui o momento intermediário entre a família e o estado. A sociedade civil em Hegel não é apenas a esfera das relações económicas mas também da sua regulamentação externa, atendendo aos princípios do Estado liberal (BOBBIO, 1982: 30).
Já Marx, interpretado por Neto, conceiturá a sociedade civil não mais como predicado mas sim como sujeito, revelando seu conteúdo de classe, retirando a áurea de representante da vontade geral e encarnação da Razão Universal. Em Marx a sociedade civil e o estado desenvolvem uma relação antitética. a sociedade civil corresponde a estrutura e o Estado corresponde a superestrutura. (NETO, 2010: 41-42).

Assim Marx não identifica, como em Hegel, as corporações como partes da sociedade civil. Esta corresponde à  base material de produção e intercâmbio da vida humana, à esfera económica, sendo assim o momento infraestrutural.

Para Gramsci interpretado por Bobbio, sociedade civil corresponde a dois planos superestruturais: 1) o conjunto de organismos privados, e o 2) da sociedade politica ou Estado. Estes planos correspondem à função hegemónica que um grupo dominante exerce em toda a sociedade. Assim, SC corresponde ao conjunto de relações ideológico-culturais, ou seja, a todo o conjunto da vida espiritual e intelectual (BOBBIO, 1982: 32- 33).

Todavia, tanto em Marx como em Grasmci sociedade civil apresenta-se como momento motor da história. Em Marx, o motor das história são as forças produtivas (momento estrutural) enquanto que em Gramsci são as forças ideológico-culturais (a superestrutura). Gramsci reconhece a relação dialética entre o momento estrutural (objectivo) e o momento superestrutural (subjectivo) no progresso histórico, entretanto dá privilégio ao segundo que o primeiro. O mais importante aqui é que para ambos o centro da mudança, do movimento histórico não é mais o Estado mas a sociedade civil, ao contrário de Hegel.

Do ponto de vista sociopolítico, sociedade civil é a arena da sociedade fora da família, do mercado e do Estado onde as pessoas se associam para realizarem interesses, não só interesses comuns mas também aspirações e interesses particulares ou mesmo privados, o objecto da sociedade civil é a arena pública de convergência de acções colectivas (FRANCISCO, 2010: 55).

Entenda-se por arena, o espaço público institucional onde pessoas diferentes se juntam para debater, negociar ou mesmo conquistar supremacia sobre outras pessoas, visando influenciar políticas e programas sociais, para o bem comum, mas também, para benefício de grupos de interesses individuais e privados (Idem).

Quanto a capacidade de actuar, exigir e atingir os seus objectivos, a sociedade civil pode ser classificada como sendo fraca ou forte. Quanto à forma de actuar, ela é forte se ela actua de forma dinâmica, autónoma e pacífica e não de forma violenta (por ex. recorrendo à guerra, linchamentos, terrorismo, ameaças de violência, etc), estática e heterónoma; quanto a forma de exigir, se os níveis de intervenção e participação política são os dinâmicos, desejáveis ou suficientes para a mudança progressiva da sociedade em que se encerre; e quanto aos objectivos, se a sociedade civil consegue fomentar a democracia, boa governação, desenvolvimento equitativo e sustentável, coesão social e bem-estar comum, e não o contrário. O contrário seria uma sociedade civil fraca.

Contudo, a forma de actuar, exigir e atingir os obejctivos da sociedade civil dependem geralmente de vários factores, tais como, por exemplo, factores socioculturais (os valores e as crenças), politico-históricos (regimes políticos precedentes), político-institucionais (democráticos ou não), económicos (autonomia ou dependência económica), etc.

1.2.1     A fraqueza da sociedade civil moçambicana
As primeiras Organizações da Sociedade Civil (OSC) em Moçambique remontam da era colonial e tomaram ora o carácter artístico-cultural, ora desportivo ora militar, e tinham como principal objectivo lutar pela independência nacional.

Após a independência nacional, a primeira república, imbuída de valores socialistas marxistas-leninistas, caracterizou-se pelo monopartidarismo e intolerância politica, o que dificultou a emergência de uma sociedade civil que defendesse os interesses da sociedade e seus próprios interesses particulares.

A sociedade civil moçambicana do passado como a actual tem sido caracterizadas por estudiosos do assunto como fracas devido ao fraco desenvolvimento humano, económico e institucional da sociedade moçambicana que torna difícil a actividade de reflexão sobre o progresso e a construção da sociedade moçambicana. A fraqueza da sociedade moçambicana no geral e o fraco carácter e baixo de nível de competência das OSC e dos seus líderes são os factores principais da fraqueza da SCM.

A fraca existência de pressão interna fora do Governo para melhorar a vida dos moçambicanos é uma manifestação das características estruturais profundas da realidade moçambicana, que só poderá mudar à medida que se verificar o progresso económico e social em Moçambique.

A segunda razão da fraqueza SCM, está no facto de a Sociedade Civil actual ignorar o passado histórico, fonte fundamental de inspiração para fortalecer a maturidade da sociedade civil contemporânea. Neste ponto destaca-se a roptura de continuidade integracional entre as gerações da sociedade civil precedentes e as recentes gerações na constituição do carácter e da integridade das Organizações da Sociedade Civil e, por outro lado, verifica-se em todo o curso histórico, que as OSC e suas lideranças não conseguiram obter soluções pacíficas e progressos nos impasses criados pelos regimes políticos instituídos. A sociedade civil teve que usar a violência (luta armada) para conquistar a independência; no regime socialista, por este ter optado pela repressão e perseguição de todas as formas de manifestação, a sociedade civil optou por uma guerra civil que durou 16 anos; de lá para cá, o principal meio de negociação para impôr os interesses da sociedade tem sido o uso da violência [greves violentas (2008) e linchamentos] (FRANCISCO, 2010: 86).

A terceira razão da avaliação negativa da OSM relaciona-se aos valores e ao impacto destas organizações na sociedade. Pois a sociedade civil moçambicana e suas lideranças carecem de confiança, devido as suas incapacidades de afirmar autoridade e credibilidade suficientes. Isto explica-se, por um lado, pela fraqueza de carácter, integridade e dignidade, por outro lado, pela fraqueza de competência, técnica e educacional, da maioria dos membros que compõem e lideram as OSC (Idem).

Além disso, muitas organizações da sociedade civil moçambicana nada mais são senão a emanação do partido no poder (Frelimo), servindo para este partido de instrumentos para defender os seus interesses e não os agendados pela própria organização.

Hodges e Tibana (2005), afirmam que para além das igrejas, autoridades tradicionais e algumas ONG envolvidas na prestação de serviços, as organizações da sociedade civil quase não têm nenhuma ligação com o mundo rural. Dado que a vasta maioria dos moçambicanos trabalha numa agricultura de subsistência, em pequenas explorações agrícolas com poucas ligações aos mercados, e tem baixos níveis de escolaridade e um acesso limitado à informação é-lhe inerentemente difícil organizar-se para defender e promover os seus interesses.

De um modo geral, Hodges e Tibana sublinham que os baixos níveis de escolaridade e os altos níveis de analfabetismo, particularmente nas áreas rurais, são uma barreira ao acesso à informação e ao conhecimento, inclusive através da imprensa, e impedem a auto-organização. Isto é reforçado pela vulnerabilidade sobretudo da maioria da população que vive num estado de pobreza absoluta, mas também de muitos moçambicanos que vivem apenas um pouco acima do limiar da pobreza e estão conscientes da precariedade do seu modo de vida. Em síntese, muitos moçambicanos estão preocupados com a sobrevivência diária, o que lhes deixa muito pouco tempo para reflectir sobre questões políticas mais gerais, participar nas organizações da sociedade civil ou realizar actividades colectivas. (Ibid.: 37-50).

Perante estas avaliações negativas da SCM, a questão urgente é: como tornar a sociedade civil moçambicana forte?

Esta questão fica por ser respondida na secção sobre os imperativos e desafios para a instauração da democracia líquida em Moçambique. Antes, vejamos o que é Democracia Liquida.

2.1 Democracia Líquida: alternativa à Democracia Representativa?
Democracia Líquida é uma forma de governo sugerido pelos partidos piratas, que buscam através desta forma combinar a Democracia Representativa e a Democracia de Participação Directa. A Democracia Líquida apresenta-se como uma síntese destas duas formas de governo e caracteriza-se pela maximização e garantia do cumprimento dos objetivos e valores das mesmas (BLUM & ZUBER, 2015: 1). Os partidos piratas supõem que a democracia líquida é a alternativa mais prática entre a democracia representativa e a democracia directa (NIJEBOER, 2013: 1).

Na Democracia Directa todos os cidadãos participam das decisões políticas nas assembleias públicas, todos tem direito à palavra de decisão. Este tipo de democracia vigorou na Atenas antiga, e é característico e realizável nos estados pequenos, podendo ser difícil a sua implementação nos grandes e complexos estados. Daí que os estados largos e complexos veem como alternativa à Democracia Directa, a Democracia Representativa, na qual são eleitos alguns cidadãos julgados competentes para representar os interesses dos eleitores (a maioria). Só que a Democracia Representativa muitas vezes falha, dado que os representantes eleitos, uma vez estando no poder, não mais representam os interesses dos seus eleitores, mas os seus próprios interesses, os interesses da ideologia do Estado e buscam antes de mais nada benefícios próprios. Durante o mandato os eleitores dificilmente podem destituir o governante representante caso não responda aos objectivos para os quais fora votado. No fim do mandato, os representantes não tem obrigação de prestar as contas sobre o cumprimento ou não do manifesto, não existe nem instrumento nem um critério para tal responsabilização (SCHIERNER, s/d.: 4-5).

Entretanto, a Democracia Líquida é vista como uma mistura ideal entre a Democracia Directa e a Democracia Representativa. Neste tipo de democracia as pessoas podem delegar o seu voto a alguns cidadãos, que podem também autovotar-se ou delegar o seu voto a outros cidadãos ou políticos. Além disso, os cidadãos podem decidir nalgum momento se querem participar directamente das decisões ou se preferem delegar essa função a outro(s) (NIJEBOER,  2013: 1).

Segundo Schiener, Democracia Líquida é uma nova forma de tomada de decisão colectiva que oferece aos eleitores um controle decisional completo (SCHIERNER, s/d.: 6). Se na democracia direta, todos os eleitores votam directamente num determinado assunto e na democracia representativa, elegem primeiramente os representantes que posteriormente devem representar os seus interesses, na democracia liquida os eleitores podem votar directamente sobre certos assuntos, ou podem delegar o seu voto aos representantes que possuem mais conhecimentos e experiências específicos sobre o assunto, ou àqueles que têm mais tempo para se informar e inteirar-se do assunto. Neste caso, a delegação é um sinal de confiança ao delegado para representar os eleitores em certas decisões (Ibid.: 7).
Este senso de confiança provisória é importante para criar o senso de responsabilidade aos delegados e os incitar a prestar as contas.

A delegação não é estática nem unidirecional, mas sim transitiva. Ou seja, os delegados podem delegar a outros delegados para que eles votem em seu lugar e no dos eleitores precedentes (que tinham delegado seus votos). Esta transitividade assegura que os peritos possam delegar a confiança que eles têm acumulado a outros delegados sobre certos assuntos que não se sintam suficientemente competentes de resolver. (Ibid.: 8).

2.1 Os pontos fortes da democracia liquida
Schierne reconhece que a democracia líquida é um sistema muito complexo e difícil que a democracia directa e representativa, porém sublinha que as vantagens que ela oferece abafa as dificuldades para a sua implementação.

Schierne sublinha seis (6) razões porque temos que escolher a Democracia Líquida. A primeira razão defende que, a democracia líquida é verdadeiramente democrática porque os eleitores tem a escolha seja de votar numa pessoa seja de delegar o seu voto a qualquer outra; a segunda razão, é que a Democracia Líquida apresenta poucos obstáculos à participação, dado que a exigência mínima para tornar-se delegado é de ser confiado pelo delegante e essa confiança é baseada no mérito, ou seja, no conjunto de conhecimentos, competências e experiência na administração e resolução de certos assuntos; em terceiro lugar, a Democracia Líquida é cooperação e não competição na medida em que dispensa de campanhas eleitorais tão dispendiosas e inúteis, da tentativa de desmascarar os candidatos adversários, evita também conflitos entre partidos durante a campanha, o que é próprio da democracia representativa. Na Democracia Líquida ganha-se confiança através das competências e do trabalho; a quarta razão, a democracia líquida funda-se no princípio de responsabilidade, na medida em que a delegação é um indício de confiança provisória, que se for traída há necessidade de se prestar as contas; a quinta razão, Democracia Líquida é representação directa das minorias graças à quase inexistência de obstáculos de participação, podendo, portanto, as minorias ser representadas; a quinta razão, a democracia líquida traz as melhores decisões na medida em que é baseada no critério de meritocracia, segundo a qual só os peritos, os talentosos, os experientes, os competentes e especialistas de determinados assuntos tem o mérito de tomar decisões sobre esses assuntos, podendo deles esperar-se as melhores decisões em relação a todos os membros da sociedade; por fim, a sexta razão, está no facto de a democracia liquida ser evolutiva, dado que a sociedade actual está sempre com conhecimentos e competências em constante atualização, significando isso que os mais informados sobre as novas tendências de resolução e administração de certos problemas estarão em constante substituição de delegações com os delegados desatualizados ou menos informados dentro de determinadas conjeturas.

2.2 Os pontos fracos da Democracia Líquida
Segundo Arjen Nijeboer, a Democracia Líquida é um complicado sistema de delegações não necessário na medida em que, num primeiro momento, os cidadãos devem entender todo o funcionamento do sistema democrático, de modo a que haja transparência e confiança no sistema de tal maneira que este possa sobreviver. Para além disso, num segundo momento, todos os cidadãos devem ser capazes de usar o sistema democrático, não apenas os jovens e os formados em matérias de informática e internet, como também os idosos que só tiveram a oportunidade de terminar a escola primária. Em terceiro lugar, a procuração do voto diferenciada pelo tópico como propõe a democracia líquida pode levantar o problema da falta de claridade e conflitos. Além disso, quanto mais complexa for a delegação de votos, mais tempo requer e torna-se mais chato gerir tudo. É óbvio que em quase todas as sociedades, a maioria dos cidadãos não querem despender o seu tempo na política. Em quarto lugar, um sistema de voto deve contar com num sistema de computadores que só podem ser compreendidos e controlados por poucas agências e pessoas peritas nesta área. A Democracia Líquida, com o seu complexo modelo de delegações, é somente possível através de sistemas de software altamente transparentes. Além disso o sistema de votação via internet corre o risco de ser invadido e corrompido por ciberpiratas (hackers) de tal forma a criar uma fraude, portanto, o papel e a caneta continuam sendo meios menos vulneráveis à fraude. Simplicidade e transparência são as precondições de qualquer sistema de voto. A Democracia Líquida exige uma total reestruturação da democracia e uma substancial reeducação dos cidadãos, o que torna difícil a sua instauração (NIJEBOER,      2013: 2-4).

Para Blum e Zuber, a democracia líquida levanta o problema da desigualdade no poder de voto na medida em que as pessoas comuns, porque possuem poucos conhecimentos, tem pouco poder de delegar os seus votos em relação as pessoas extraordinárias (BLUM E ZUBER, 2015: 23).

A Democracia Líquida também levanta problemas de inconsistência política na medida em que dá aos indivíduos livre escolha de delegar o seu voto ou não, numa determinada área específica. Entretanto esta delegação de área específica implica que a composição do corpo de decisão varia de área em área. A inconsistência politica tem a ver com o facto de as decisões politicas serem feitas em áreas específicas e não em vista ao bem-estar comum de toda a sociedade como um todo (Ibid.: 24).
Para nós a Democracia Líquida pode ser uma alternativa para o resgate do poder do voto aos moçambicanos, porém a sua complexidade e profundidade exige que primeiro respondamos a certos imperativos e desafios para a sua instauração, num Estado pobre e desorganizado como o nosso.

2.3 Imperativos e desafios para a instauração da Democracia Líquida em Moçambique
Como vimos nas páginas anteriores, constatamos que o que enferma a democracia moçambicana são dois principais factores: a ausência da consciência política da parte do cidadão moçambicano e a existência de sociedade civil muito fraca. Neste capítulo, queremos sublinhar que há necessidade de se instaurar a democracia liquida em Moçambique de modo que os cidadãos possam ter maior espaço de intervenção em assuntos políticos e de tal maneira que os representantes eleitos possam atender aos interesses da sociedade com maior responsabilidade e comprometimento. Contudo, sublinhamos que, para que isso aconteça há necessidade de se responder a dois imperativos: desenvolvimento da consciência politica e o fortalecimento da sociedade civil; e a dois desafios: o desenvolvimento económico e a massificação do uso das novas tecnologias de informação e comunicação e internet.


2.3.1 Alfabetização politica para consciência política
A democracia líquida é um sistema de delegação muito complexo e complicado e que exige da sociedade educação suficiente em todos os domínios do saber, mas sobretudo a educação para a cidadania para a sua implementação. A educação para a cidadania só é possível através de uma educação cívica e democrática.
Por educação cívica entendemos aquela que torna o cidadão consciente dos seus direitos e deveres na sociedade. A educação democrática é aquela baseada na conscientização das massas dos problemas histórico-sociais usando como método de ensino e aprendizagem o diálogo aberto e crítico sobre a realidade sócio-histórica de uma determinada sociedade.

A educação dota o homem de capacidades intelectuais e práticas que o possibilitam a fazer uma análise crítica de sua própria condição existencial e da sua sociedade. Entretanto há necessidade de se formar um cidadão com consciência crítica de modo a que haja maior consciência e participação políticas (Freire).

Contudo, a educação é apenas um ponto de partida e não um salvador messiânico em si e por si, pois se a politica que se faz num determinado território é uma política de dominação, ou seja, da opressão da classe dominada (o povo) pela classe dominante (as elites governantes), a mesma política deve servir de instrumento de libertação. É a mesma política que devera devolver o poder de decisão e do voto ao povo. Como? Através da participação política do cidadão, do debate de ideias, da crítica, da manifestação pacífica e do voto consciente.

Bem afirmou Nicolas Journet que “o simples facto de dar o poder aos cidadãos não garante a viabilidade das suas decisões, nem suas qualidades” (JOURNET, 2017: 2). Entretanto, o papel da educação é o de preparar e orientar o cidadão para o exercício da cidadania, sabendo o que é votar e porque votar e a quem votar.


2.3.2 Fortalecer a sociedade civil moçambicana
Para que a sociedade civil moçambicana se torne forte Francisco recomenda que cultive os seguintes imperativos:1) Dignidade pacifista; 2) honestidade corajosa; 3) Excelência; 4); transparência; e 5) Confiança.

O imperativo da dignidade, consistirá numa reflexão corajosa, íntegra e com sentido de responsabilidade sobre a consolidação da democracia pluralista moçambicana; o imperativo da "honestidade corajosa" consistirá na tomada de consciência dos problemas presentes e na busca do passado como fonte de inspiração para a sua resolução; o imperativo da Excelência consiste no desenvolvimento de carácter e competências que possam garantir com que os interesses comuns da sociedade não se tornem vítimas de interesses particulares estabelecidos; o imperativo da transparência consiste no exercício de práticas honestas, íntegras e de comprometimento com objectivos socialmente viáveis; por fim, o imperativo da confiança consiste em a SCM conquistar a confiança das pessoas, através da mudança do ambiente de fraca credibilidade em que ela se encontra (FRANCISCO, 2010: 88-91).

Em suma, para Francisco o sucesso ou fracasso do fortalecimento da SCM dependerá, em grande mediada, da criação de infra-estruturas e condições institucionais para que as OSC se tornem mais competentes, eficientes e eficazes.

Para nós seria mais pertinente que, se se instaurasse Democracia Liquida em Moçambique, a delegação de votos não fosse feita pelo cidadão como indivíduo mas sim pelas Organizações da Sociedade Civil enquanto grupos de interesse que sabem a quem melhor podem delegar as suas decisões e representar seus interesses. Além disso, é necessário que a Democracia considere funções e virtudes democráticas importantes tais como, por exemplo, a deliberação pública e o valor da ética na confiança depositada aos delegados e não apenas conhecimentos específicos sobre certos assuntos.


2.3.3 O desenvolvimento económico e a massificação das TIC’s
De um modo geral, é primeiramente necessário que se melhore as condições económicas e sociais dos moçambicanos, todavia para que haja desenvolvimento económico e social é antes de mais nada necessário que a SCM por si só, lute por autoafirmar-se como sociedade civil forte e busque exigir e defender os interesses da sociedade bem como os interesses particulares de diversos grupos. Este é o desafio do desenvolvimento económico e social de que Moçambique precisa para instaurar a democracia liquida.

Outro desafio, também muito importante, é a massificação das novas tecnologias de informação e o ensino do seu uso, dado que a Democracia Liquida aposta mais no sistema de votação eletrónico-virtual. Além disso, estas novas tecnologias de informação contribuirão grandemente para a expansão da informação e comunicação àquelas camadas sociais que tem dificuldades ao seu acesso, como por exemplo, os camponeses nas zonas rurais.

  
Conclusão
No percurso deste trabalho descrevemos o correr da Democracia Representaviva em Moçambique desde a sua instituição até aos tempos hodiernos, e constatamos que durante este percurso todo a Democracia Representativa em Moçambique tem sido condenada ao fracasso, devido à sua 1) fraca representatividade; 2) à abstenção ao voto de um considerável número da população e; 3) ao não atingir os objectivos almejados pelo povo: a paz, a prosperidade e o bem-estar social.

Nesta constatação identificamos três grandes problemas que enfermam a Democracia em Moçambique, que são: 1) a falta da consciência política da parte do cidadão moçambicano; 2) a existência de uma sociedade civil muito fraca e; 3) a ineficiência do próprio sistema democrático-representativo.

Constatamos, também, que o que contribui para a falta da consciência política em Moçambique é, principalmente, 1) a falta da educação, ou seja, a prevalência de um grande número de cidadãos analfabetos e; 2) a pobreza absoluta (que ocupa o maior tempo dos moçambicanos na procura de meios e condições de sobrevivência não ganhando tempo para reflectir sobre a sua condição social e politica); constatamos ainda que a sociedade Civil moçambicana é fraca porque 1) não consegue atingir os seus objectivos por meios pacíficos; 2) não é autónoma (depende dos doadores); 3) é geralmente partidária, etc.; observamos que a Democracia Representativa é um sistema ineficiente porque 1) geralmente o critério de candidatura é duvidoso, ou seja, as razões que levam um cidadão a candidatar-se a um certo cargo político não são transparentes; 2) o eleitor dificilmente pode afastar o governante eleito durante o mandato caso não responda aos interesses pelos quais fora votado e; 3) após o mandato não existe nenhum instrumento nem critério de prestação de contas, caso o governante não tenha atingido os objectivos da sua governação.

Perante estes todos problemas propusemos a Democracia Líquida como sistema alternativo. Explicamos que a Democracia Liquida é síntese da Democracia Directa e Democracia Representativa e que consiste em que o cidadão pode votar directamente num assunto ou delegar o seu voto à pessoas especialistas e peritas para votar num determinado assunto.

Observamos ainda que para instauração da Democracia Líquida é necessário atendermos a dois grandes imperativos: 1) a alfabetização política através educação cívica e democrática aos cidadãos moçambicanos para o desenvolvimento da consciência política e; 2) o fortalecimento da sociedade civil moçambicana; e dois desafios: 1) o desenvolvimento económico e; 2) a massificação das Tic’s.

Em jeito de conclusão, é necessário termos a consciência de que a Democracia Líquida é um sistema democrático inevitável, pois tem como origem o progresso social, económico, político, científico e tecnológico das sociedades modernas. Por isso, urge repensarmos neste sistema sem esquecermos a nossa realidade histórico-social e cultural.

Bibliografia
ARISTÓTELES. A Politica. s/l; s/ed., s/d.
BLUM, Cristian & ZUBER, Cristina Isabel. Liquid democracy: potentials, problems and perspectives. The journal of political philosophy. 2015. christinazuber.com/.../wp.../Blum-Zuber_Liquid-Democracy.pdf. capturado em 20 de Setembro de 2017.
BOBBIO, Norberto. O conceito de sociedade civil. 1ª ed. Rio de Janeiro, EDICOES GRAAL, LTDA., 1982.
CASTIANO, J.P.  Vozes da Liberdade: Nos 40 anos da Independência será que formamos quadros ou apenas números? Youtube: MozAfrica view, 2015. https://www.youtube.com/watch?v=mBUJLc4I8Gw. Capturado a 24 de Junho de 2015.
FRANCISCO, Antonio. Sociedade Civil em Moçambique: Expectativas e Desafios.www.iese.ac.mz/lib/noticias/2010/SociedadeCivilMocambique_AF_PEMBA.p. 2010. Capturado em 15 de Setembro de 2017.
HODGES, Tony & TIBANA, Roberto. A economia politica do orçamento em Moçambique. 1ª ed. s/l. PRINCIPIA, 2005.
JOURNET. Nicolas. Doner le pouvoir aux citoyens. Référendums populaires, votations, délibérations citoyennes, Web 3.0… : les initiatives se multiplient pour rendre le pouvoir aux citoyens. La démocratie en sortira-t-elle grandie? 2017. https://www.scienceshumaines.com/donner-le-pouvoir-aux-citoye... Capturado em 20 de Setembro de 2017
KIERKEGAARD, Emil O. W. & TRANBERG, Bo. Political ignorance and liquid democracy: a partial solution? emilkirkegaard.dk/en/wp-content/uploads/LD_paper_draft1.pdf. 2014. Capturado em 20 de Setembro de 2017.
MARX, K. H. & ENGELS, F. A Ideologia Alemã. s/c. Ridendo Castigat Mores, 1999.
NETO, Estevam Alves Moreira. “Sobre a sociedade civil em Hegel, Marx e Gramsci”.www.uel.br/grupopesquisa/gepal/anais_ivsimp/gt8/5_estevamneto.pdf publicado em 17 de Setembro de 2010. Capturado em 10 de Setembro de 2017.
NIJEBOER, Arjen. Liquid Democracy versus Direct Democracy through initiative and referendum: Which is best? 2013. https://www.democracy-international.org/.../PDF/. Capturado 20 de Setembro de 2017
SANDOVAL, S.A.M. Algumas Reflexões sobre Cidadania e Formação de Consciência Política no Brasil. In: SPINK, M. J. (Org.). A Cidadania em construção, uma Reflexão Transdisciplinar. São Paulo: Cortez, 1994.
____________________. The Crises of the Brazilian of Labor Movement Yand the Emergence of Alternatives of Working-class Contention in the 1990s. São Paulo, 2001.
SCHIERNER, Dominik. La democratie liquide: une veritable democratie pour le 21ͤ siècle. https://framablog.org/2015/12/09/democratie-liquide/?print=pdf. Publicado em 11 de Dezembro de 2015. Capturado em 20 de Setembro de 2017.






[1] CASTIANO, J.P.  “Vozes da Liberdade”: Nos 40 anos da Independência será que formamos quadros ou apenas números? Youtube: MozAfrica view, 2015. https://www.youtube.com/watch?v=mBUJLc4I8Gw. Capturado a 24 de Junho de 2015.