segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Deixar-se partir? Um debate aberto sobre o suicídio!

Resumo-introdutório

O suicídio é umas das principais causas de morte no mundo e um problema discutido por diversos autores e organizações internacionais de saúde que lutam pela melhoria da saúde pública. Embora seja prevenível, o suicídio mata em cada 40 segundos uma pessoa algures no mundo. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o suicídio é a segunda maior causa de mortes no mundo sendo a maioria dos que se matam jovens entre os 15 à 29 anos de idade (OMS, 2014: 6).

Os dados estatísticos de 2012 da mesma organização, estimam a ocorrência de mais 804 000 casos de suicídios no mundo, perfazendo uma a taxa anual de 11.4 por 100 000 habitantes. Entretanto, estes dados não são exactos dado que muitos casos de suicídio não são reportados pelo facto de o mesmo ser ilegal nalguns estados e pela prevalência do estigma ao suicídio (OMS, 2014: 10).

 Avimar Ferreira Júnior no artigo intitulado “Comportamento suicida no Brasil e no mundo”, baseando-se nos dados da OMS (2012), apresenta Moçambique como um dos países do mundo que apresenta maior índice de suicídios, e o país africano que apresenta a mais elevada taxa de suicídios, tendo-se registado uma taxa de 27,4 mortes voluntárias por cada 100 mil habitantes (Júnior, 2015: 2).

Por ser um problema sério que afecta a nossa vida social, económica e psicológica e por ocasião da passagem do Dia Mundial de Prevenção do Suicídio (10 de Setembro), achamos pertinente, através deste artigo, abrir um espaço de debate sobre a decisão de tirar a própria vida. A questão de fundo que orienta o nosso discurso é: vale a pena deixar-se partir, quando a vida parece não ter mais sentido? Porquê?

O objectivo deste debate, é colher informações sobre as percepções que os nossos compatriotas têm sobre a decisão de tirar-se a própria vida.

Tais informações serão importantes para posterior elaboração de um estudo mais aprofundado sobre as percepções sociais do suicídio ao nível do país, no geral, e da província de Inhambane, em particular.

  1. A problemática conceptual do suicídio
O suicídio constitui um problema social e até mesmo filosófico muito sério, porque falar de suicídio implica procurar entender o sentido da vida, se vale a pena ser vivida (Albert Camus). Implica também perceber o estado da sociedade e os factores sociais e outros que influem na vida das pessoas e que as induzem a acabar com as suas vidas.

Para Durkheim, que é um clássico no estudo sociológico do suicídio, o suicídio é um acto voluntário, consciente e intencional, positivo ou negativo, de acabar com a própria vida (Durkheim, 2000: 14).

Durkheim coloca como indício central de suicídio, a consciência que o individuo suicida tem de que o acto que vai cometer causar-lhe-á a morte.

Na mesma linha de pensamento, a OMS (2014:12) define o suicídio como sendo “o acto de deliberadamente matar-se a si próprio”. Porém, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) do Brasil, defende que “independentemente da intenção ou consciência, independentemente dos meios usados, da motivação e da conjuntura em que o fenómeno ocorre, toda a morte autoinfligida é suicídio” (CFP, 2013: 17).

No entanto, torna-se difícil definir o que seja suicídio devido à existência de vários factores do suicídio e devido à existência de vários comportamentos suicidários[1] que se confundem com o suicídio, como são os casos de consumo abusivo de substâncias psicoactivas, a condução de veículos em estado de extrema embriaguez, ou quaisquer outros comportamentos de risco e de automutilação (Idem).

Alvarez, A. na sua Obra “O Deus selvagem”, considera o suicídio um problema muito complexo e, portanto, que nenhuma teoria poderá dar uma explicação cabal e definitiva sobre o mesmo dado que envolve infinitas razões e tão complexas. Entretanto, toda a explicação do suicídio é uma explicação parcial, ou seja, o estudioso explica as razões de um determinado acto de suicídio tal como as entende (Alvarez, 1999, p. 12).

Várias são as teorias que tentam explicar o suicídio, porém nenhuma delas por si só pode explicar cabalmente um fenómeno tão complexo, multideterminado e difícil de investigar como este, como afirmou Alvazez: “o suicídio é um mundo fechado que tem uma lógica própria e irresistível” (Ibid., p. 127).

Segundo a teoria psicanalítica o suicídio pode ser explicado a partir de transtornos de humor (depressão), transtornos mentais e comportamentos decorrentes do uso de substâncias psicoativas (ex. alcoolismo), transtornos de personalidade (ex. comportamento anti-social); esquizofrenia; transtornos de ansiedade.

A teoria psicológica defende que o suicídio está associado à perdas recentes, perdas de figuras parentais na infância, dinâmica familiar conturbada, datas importantes, reacções de aniversário, personalidade com traços significativos de impulsividade, agressividade, humor hábil;

A teoria clínica associa o suicídio à doenças incapacitantes, dor crónica, lesões desfigurantes perenes, deficiência física, epilepsia, trauma medular, neoplasias malignas, HIV/Sida.

A teoria económica - sustenta que as práticas administrativas associadas a outros factores são causas dos suicídios. Para esta teoria, os modelos de gestão ou práticas administrativas modernos são baseados nos avanços tecnológicos, o que diminui a necessidade de mão-de-obra em massa, criando desse modo o desemprego. As pessoas vivem com medo do desemprego na sociedade capitalista, tornando-as dependentes das empresas o que faz aumentar as pressões para que elas se identifiquem e incorporem os seus valores como verdadeiros dogmas. Entretanto, segundo esta teoria, as organizações são prisões psíquicas, e a gestão do afectivo cresce como estratégia de controlo e poder (Bastos, 2010, p. 5).

A teoria sociológica defende que o suicídio está associado aos seguintes factores externos ao individuo: a idade, sexo, extractos económicos extremos, local de residência; ocupação profissional, estatuto social, isolamento social, estado civil, Identidade nacional (migrantes, imigrantes, etc.)

Etimologicamente, o termo suicídio deriva do latim sui – de si – e caedere – matar, que significa morte de si, ou morte autoinfligida e aparece muito tarde em relação ao próprio acto de suicidar-se. Alguns estudiosos acreditam que foi pela primeira vez usado em 1651, mas já se encontrava escrito na obra de Sir Thomas Browne, de título “Religio Medici”. Antes deste termo eram usadas expressões como “self murder” (auto-assassinato) , “self-homicide” (auto-homicídio) , “self-slaughter” (auto-massacre). Estas expressões reflictiam a pretensão cristã de considerar o suicídio como um assassinato (Alvarez, 1999, p. 63; Shikida et al, 2006, p. 4). Outros afirmam que o termo foi usado pela primeira vez por Desfointaines em 1717 para designar o acto deliberado através do qual o indivíduo decide intencionalmente provocar a sua própria morte (Costa, 2013: 16). Torna-se difícil estabelecer um consenso entre os diversos autores.

Pensar no suicídio faz parte da natureza humana e resulta da sua liberdade de escolha, no geral, e da liberdade de escolha do estilo e qualidade de vida que deseja levar, em particular.

Para Martin Heidegger (2005) do “Ser e Tempo” o homem é um ser para morte, porquanto é um ser consciente do seu fim, da sua temporalidade e da sua projecção histórica enquanto um mar de possibilidades que, se não forem realizadas ele manifesta angústia e desespero, fonte de atracção e desejo de morte.

O suicídio geralmente revela o fracasso do individuo na vida, revela o culminar de uma confluência de problemas que tornaram a vida insuportável e absurda (Camus), ou seja, sem sentido.

Assim, o suicídio resulta de um sofrimento interior insuportável que torna o indivíduo desesperado ao ponto de desejar a sua própria morte. Ele é um meio que o individuo suicida usa para se comunicar aos demais, as suas frustrações, tormentos, dores, decepções, desespero e angústia e que não houve ou viu nenhuma outra alternativa de se livrar dos seus pesares senão tirar a sua própria vida (Toro et al, 2013, p.7).

O suicídio aparece como uma única solução de resolução de vários problemas que se encadeiam ao longo da história da vida do individuo, como destacou um estudante suicida, ex aluno meu no filme em que ele documenta previamente a sua própria morte “Mil Problemas, Uma Solução[2]”.

O suicídio geralmente manifesta-se como uma solução aos milhares de problemas que o individuo vem suportando no curso da sua vida. Mas, apesar de ser visto como única solução a uma série de problemas, o suicídio não é geralmente visto como um fim para tudo, mas, pelo contrário, como única alternativa possível para uma determinada situação imediatamente insuportável e aparentemente sem resolução (Cfr. Ferreira, 2008, p. 6).

Dessa forma, o suicídio é um pedido de ajuda de resolução de problemas da pessoa que está a sofrer, e que não visa essencialmente acabar com a sua própria vida, mas sim ter uma vida de qualidade e de acordo com a sua concepção de qualidade de vida.

  1. Comportamentos suicidários
Existem vários comportamentos suicidários, ou seja, comportamentos que atentam contra a vida, que são:

Parassuicídio- acto ou comportamento não fatal, eventualmente não habitual num dado indivíduo e com o qual ele não tem clara intenção de morrer, mas no qual se arrisca a danos em si mesmo (mais ou menos graves) caso não exista intervenção de outrem (Oliveira et al, 2001, p. 510; Ferreira, 2008, p.18).

Tentativa de suicídio - a OMS (2014, p. 12) considera tentativa de suicídio ao comportamento suicida não fatal e refere-se ao autoenvenenamento, autoinjúria ou autodanificação que pode ou não ter um resultado fatal.

As tentativas do suicídio diferem do para-suicídio, pois nas tentativas do suicídio o nível de intencionalidade suicida é superior em relação ao para-suicídio (Silva, 2013, p.11). O parassuicídio relaciona-se aos comportamentos de risco. Em cada morte de um adulto por suicídio há mais de 20 tentativas de suicídio (OMS, 2014, p. 9).

As tentativas de suicídio são mais comuns entre jovens e no sexo feminino, enquanto que os suicídios são mais frequentes no sexo masculino e nos idosos, por exemplo, ingestão excessiva de substâncias psicoactivas (Idem);

Ideação suicida - é alimentação persistente da ideia de se matar, mas que nunca seja a ser realizada. É pensar constantemente em acabar com a própria vida e não consumar o acto.
Existem vários tipos de suicídio, determinados de acordo com a área de pesquisa de quem os classifica, aqui iremos apresentar apenas os tipos de suicídio na perspectiva sociológica (que é a nossa área de interesse), de acordo com o clássico do estudo sociológico do suicídio, Émile Durkheim.

Em Durkheim (2000) há três tipos de suicídios: (1) O suicídio egoísta, que resulta da existência de pouca integração social ou pouco desenvolvimento de laços sociais dos indivíduos na sociedade; (2) suicídio altruísta, que resulta da extrema integração social do individuo na sociedade ao ponto de perder a sua identidade como pessoa e acredita que sua morte pode ser um benefício para a sociedade; e o (3) suicídio anómico, que resulta da fraca regulação da sociedade, ou seja, quando as normas da sociedade não correspondem aos objectivos de vida do individuo.

  1. Ideias sobre o suicídio ao longo da história
Ao longo da história, o suicídio foi conotado de diversas formas, ora como um acto corajoso, ora como pecado, ora como crime, ora como um mal, ora como patologia e loucura (Cfr. Pedro, s/d.: 2).

Na Grécia antiga, os gregos só se suicidavam pelas melhores razões possíveis: por pesar, por princípios patrióticos ou para evitar a desonra. Ou seja, os gregos toleravam o suicídio e até o louvavam, desde que a pessoa apresentasse à justiça razões suficientes para consumar o acto (Cfr. Alvarez, 1999, p. 61, Durkheim, 2000).

Já os romanos, não viam o suicídio com medo nem com repulsa, mas com dignidade e segundo os princípios que haviam escolhido para orientar as suas vidas. Para eles, “viver de forma nobre também significava morrer de forma nobre e no momento certo” (Alvarez, 199, p. 75).

Os romanos somente puniam o suicídio se fosse feito sem motivos justos porque o consideravam irracional e não crime, ou seja, na lei romana o suicídio era um crime estritamente económico e não uma ofensa nem violação da moral nem violação da norma religiosa, mas apenas contra os investimentos de capital da classe proprietária de escravos ou do tesouro do Estado (Ibid., p. 75-76).

Portanto, a Europa pagã, isto é, antes da introdução do cristianismo, tolerava o suicídio, porém quando se introduz o monoteísmo cristão há certa intolerância religiosa e também do suicídio, considerando-o um crime capital baseando-se nas ideias duma das leis do Pentateuco “não matarás” e do reforço que Santo Agostinho faz sobre essa lei (Ibid., p. 65).
Segundo Agostinho de Hipona o suicídio é “homicídio de si”. Para o santo, quem tira a sua própria vida é homicida e a culpa pela sua morte é mais grave quanto mais inocente terá sido a causa da morte (Agostinho, 2006; p. 149).

Toda a Idade Média condenou o suicídio até que, com a Revolução Francesa, que pregava como valores essenciais, a liberdade, a igualdade e a solidariedade, foram abolidas as medidas e leis condenatórias contra o acto de matar-se.

Actualmente o suicídio é socialmente (não necessariamente do ponto de vista legal) condenado pela maioria das sociedades, em particular, e aquele que é usado como método para a prática do terrorismo por quase todas as sociedades, no geral (Shikida et al, 2006 p. 5).

  1. A dimensão social de suicídios
Segundo Durkheim (2000), identificar as causas individuais de suicídios contribui para compreender as motivações pessoais que levaram o indivíduo a se matar, porém não contribuem pra explicar as variações regionais da taxa social de suicídios. Entretanto, em Durkheim o suicídio é um fenómeno social e cada sociedade tem certa predisposição para certa taxa social de suicídios, baseada no nível de integração social dos indivíduos. Quanto mais profunda for a integração social, menor será a probabilidade de que os indivíduos venham suicidar-se e quanto menos profunda a integção social, maior será a probabilidade de que os indivíduos se suicidem.

De acordo com Netto (2007) os suicídios são determinados pela sociedade em que acontecem; sendo, na esteira de Berger e Luckman (2004), uma construção social da realidade, vinculada ao contexto histórico-social dessa mesma realidade. As circunstâncias do ambiente físico,  socioeconómico e cultural no qual as pessoas nascem, vivem, trabalham e envelhecem influenciam, positiva ou negativamente, a saúde pública mental (Loureiro, 2018; p. 4).

Entretanto, as causas sociais tem primazia em relação as causas psicopatológicas, pois que, segundo Adam e Herzlich (2001), as doenças têm um carácter histórico, pois resultam da realidade histórico-social em que aparecem, ou seja, "de complexas interacções entre processos orgânicos e factores sociais" (Ibid. p. 11). Por exemplo, a depressão é conhecida como “a doença da modernidade” porque, segundo Simmel (2005), a sociedade moderna capitalista caracteriza-se pelo distanciamento e pelo anonimato, o que cria problemas psíquicos e aumenta o índice de transtornos mentais. Entretanto, o social relaciona-se directamente com o psíquico, na medida em que a realidade social cria e intensifica os problemas psíquicos (Pedro, s/d.: 7).

Dessa forma, na investigação sobre as causas dos suicídios, as ciências sociais e ciências do comportamento, devem considerar o papel da sociedade, avaliando os seus aspectos socioeconómicos e culturais (Pedro, s/d.: 1).

Portanto, “a classificação das diferentes causas do suicídio deveria ser a classificação dos próprios defeitos da nossa sociedade” (DA SILVA, 2012, p. 4).
Uma taxa social elevada de suicídios denuncia o mal-estar da sociedade em que se verifica, por isso que o suicídio é um fenómeno social que deve ser tomado a sério no sentido de se prevenir.

  1. Deixar-se partir?
Independentemente das causas, dos meios e das consequências do suicídio, este é uma decisão pessoal, que resulta da liberdade humana de decidir sobre a sua vida, o seu próprio destino. Cada ser humano é dono das suas próprias escolhas, boas ou mas, e da sua própria vida. Entretanto, o suicídio deve antes de mais nada ser entendido como um acto de expressão mais alta da liberdade humana, porém este acto de expressão pode ser, do ponto de vista moral e legal, colocado em causa devido às consequências sociais que dele advém ou podem advir.
No entanto, com o intuito de colher os juízos morais em volta do acto de tirar a sua própria vida, convidamos ao estimado leitor a reflectir e responder a questão: deixar-se partir? Porquê?



[1] Provem de parassuícidio - acto ou comportamento não fatal, eventualmente não habitual num dado individuo e com o qual ele não tem clara intenção de morrer, mas no qual se arrisca a danos em si mesmo (mais ou menos graves) caso não exista intervenção de outrem (Oliveira et all, 2001: 510).
[2] Vide no Youtube