segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Deixar-se partir? Um debate aberto sobre o suicídio!

Resumo-introdutório

O suicídio é umas das principais causas de morte no mundo e um problema discutido por diversos autores e organizações internacionais de saúde que lutam pela melhoria da saúde pública. Embora seja prevenível, o suicídio mata em cada 40 segundos uma pessoa algures no mundo. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o suicídio é a segunda maior causa de mortes no mundo sendo a maioria dos que se matam jovens entre os 15 à 29 anos de idade (OMS, 2014: 6).

Os dados estatísticos de 2012 da mesma organização, estimam a ocorrência de mais 804 000 casos de suicídios no mundo, perfazendo uma a taxa anual de 11.4 por 100 000 habitantes. Entretanto, estes dados não são exactos dado que muitos casos de suicídio não são reportados pelo facto de o mesmo ser ilegal nalguns estados e pela prevalência do estigma ao suicídio (OMS, 2014: 10).

 Avimar Ferreira Júnior no artigo intitulado “Comportamento suicida no Brasil e no mundo”, baseando-se nos dados da OMS (2012), apresenta Moçambique como um dos países do mundo que apresenta maior índice de suicídios, e o país africano que apresenta a mais elevada taxa de suicídios, tendo-se registado uma taxa de 27,4 mortes voluntárias por cada 100 mil habitantes (Júnior, 2015: 2).

Por ser um problema sério que afecta a nossa vida social, económica e psicológica e por ocasião da passagem do Dia Mundial de Prevenção do Suicídio (10 de Setembro), achamos pertinente, através deste artigo, abrir um espaço de debate sobre a decisão de tirar a própria vida. A questão de fundo que orienta o nosso discurso é: vale a pena deixar-se partir, quando a vida parece não ter mais sentido? Porquê?

O objectivo deste debate, é colher informações sobre as percepções que os nossos compatriotas têm sobre a decisão de tirar-se a própria vida.

Tais informações serão importantes para posterior elaboração de um estudo mais aprofundado sobre as percepções sociais do suicídio ao nível do país, no geral, e da província de Inhambane, em particular.

  1. A problemática conceptual do suicídio
O suicídio constitui um problema social e até mesmo filosófico muito sério, porque falar de suicídio implica procurar entender o sentido da vida, se vale a pena ser vivida (Albert Camus). Implica também perceber o estado da sociedade e os factores sociais e outros que influem na vida das pessoas e que as induzem a acabar com as suas vidas.

Para Durkheim, que é um clássico no estudo sociológico do suicídio, o suicídio é um acto voluntário, consciente e intencional, positivo ou negativo, de acabar com a própria vida (Durkheim, 2000: 14).

Durkheim coloca como indício central de suicídio, a consciência que o individuo suicida tem de que o acto que vai cometer causar-lhe-á a morte.

Na mesma linha de pensamento, a OMS (2014:12) define o suicídio como sendo “o acto de deliberadamente matar-se a si próprio”. Porém, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) do Brasil, defende que “independentemente da intenção ou consciência, independentemente dos meios usados, da motivação e da conjuntura em que o fenómeno ocorre, toda a morte autoinfligida é suicídio” (CFP, 2013: 17).

No entanto, torna-se difícil definir o que seja suicídio devido à existência de vários factores do suicídio e devido à existência de vários comportamentos suicidários[1] que se confundem com o suicídio, como são os casos de consumo abusivo de substâncias psicoactivas, a condução de veículos em estado de extrema embriaguez, ou quaisquer outros comportamentos de risco e de automutilação (Idem).

Alvarez, A. na sua Obra “O Deus selvagem”, considera o suicídio um problema muito complexo e, portanto, que nenhuma teoria poderá dar uma explicação cabal e definitiva sobre o mesmo dado que envolve infinitas razões e tão complexas. Entretanto, toda a explicação do suicídio é uma explicação parcial, ou seja, o estudioso explica as razões de um determinado acto de suicídio tal como as entende (Alvarez, 1999, p. 12).

Várias são as teorias que tentam explicar o suicídio, porém nenhuma delas por si só pode explicar cabalmente um fenómeno tão complexo, multideterminado e difícil de investigar como este, como afirmou Alvazez: “o suicídio é um mundo fechado que tem uma lógica própria e irresistível” (Ibid., p. 127).

Segundo a teoria psicanalítica o suicídio pode ser explicado a partir de transtornos de humor (depressão), transtornos mentais e comportamentos decorrentes do uso de substâncias psicoativas (ex. alcoolismo), transtornos de personalidade (ex. comportamento anti-social); esquizofrenia; transtornos de ansiedade.

A teoria psicológica defende que o suicídio está associado à perdas recentes, perdas de figuras parentais na infância, dinâmica familiar conturbada, datas importantes, reacções de aniversário, personalidade com traços significativos de impulsividade, agressividade, humor hábil;

A teoria clínica associa o suicídio à doenças incapacitantes, dor crónica, lesões desfigurantes perenes, deficiência física, epilepsia, trauma medular, neoplasias malignas, HIV/Sida.

A teoria económica - sustenta que as práticas administrativas associadas a outros factores são causas dos suicídios. Para esta teoria, os modelos de gestão ou práticas administrativas modernos são baseados nos avanços tecnológicos, o que diminui a necessidade de mão-de-obra em massa, criando desse modo o desemprego. As pessoas vivem com medo do desemprego na sociedade capitalista, tornando-as dependentes das empresas o que faz aumentar as pressões para que elas se identifiquem e incorporem os seus valores como verdadeiros dogmas. Entretanto, segundo esta teoria, as organizações são prisões psíquicas, e a gestão do afectivo cresce como estratégia de controlo e poder (Bastos, 2010, p. 5).

A teoria sociológica defende que o suicídio está associado aos seguintes factores externos ao individuo: a idade, sexo, extractos económicos extremos, local de residência; ocupação profissional, estatuto social, isolamento social, estado civil, Identidade nacional (migrantes, imigrantes, etc.)

Etimologicamente, o termo suicídio deriva do latim sui – de si – e caedere – matar, que significa morte de si, ou morte autoinfligida e aparece muito tarde em relação ao próprio acto de suicidar-se. Alguns estudiosos acreditam que foi pela primeira vez usado em 1651, mas já se encontrava escrito na obra de Sir Thomas Browne, de título “Religio Medici”. Antes deste termo eram usadas expressões como “self murder” (auto-assassinato) , “self-homicide” (auto-homicídio) , “self-slaughter” (auto-massacre). Estas expressões reflictiam a pretensão cristã de considerar o suicídio como um assassinato (Alvarez, 1999, p. 63; Shikida et al, 2006, p. 4). Outros afirmam que o termo foi usado pela primeira vez por Desfointaines em 1717 para designar o acto deliberado através do qual o indivíduo decide intencionalmente provocar a sua própria morte (Costa, 2013: 16). Torna-se difícil estabelecer um consenso entre os diversos autores.

Pensar no suicídio faz parte da natureza humana e resulta da sua liberdade de escolha, no geral, e da liberdade de escolha do estilo e qualidade de vida que deseja levar, em particular.

Para Martin Heidegger (2005) do “Ser e Tempo” o homem é um ser para morte, porquanto é um ser consciente do seu fim, da sua temporalidade e da sua projecção histórica enquanto um mar de possibilidades que, se não forem realizadas ele manifesta angústia e desespero, fonte de atracção e desejo de morte.

O suicídio geralmente revela o fracasso do individuo na vida, revela o culminar de uma confluência de problemas que tornaram a vida insuportável e absurda (Camus), ou seja, sem sentido.

Assim, o suicídio resulta de um sofrimento interior insuportável que torna o indivíduo desesperado ao ponto de desejar a sua própria morte. Ele é um meio que o individuo suicida usa para se comunicar aos demais, as suas frustrações, tormentos, dores, decepções, desespero e angústia e que não houve ou viu nenhuma outra alternativa de se livrar dos seus pesares senão tirar a sua própria vida (Toro et al, 2013, p.7).

O suicídio aparece como uma única solução de resolução de vários problemas que se encadeiam ao longo da história da vida do individuo, como destacou um estudante suicida, ex aluno meu no filme em que ele documenta previamente a sua própria morte “Mil Problemas, Uma Solução[2]”.

O suicídio geralmente manifesta-se como uma solução aos milhares de problemas que o individuo vem suportando no curso da sua vida. Mas, apesar de ser visto como única solução a uma série de problemas, o suicídio não é geralmente visto como um fim para tudo, mas, pelo contrário, como única alternativa possível para uma determinada situação imediatamente insuportável e aparentemente sem resolução (Cfr. Ferreira, 2008, p. 6).

Dessa forma, o suicídio é um pedido de ajuda de resolução de problemas da pessoa que está a sofrer, e que não visa essencialmente acabar com a sua própria vida, mas sim ter uma vida de qualidade e de acordo com a sua concepção de qualidade de vida.

  1. Comportamentos suicidários
Existem vários comportamentos suicidários, ou seja, comportamentos que atentam contra a vida, que são:

Parassuicídio- acto ou comportamento não fatal, eventualmente não habitual num dado indivíduo e com o qual ele não tem clara intenção de morrer, mas no qual se arrisca a danos em si mesmo (mais ou menos graves) caso não exista intervenção de outrem (Oliveira et al, 2001, p. 510; Ferreira, 2008, p.18).

Tentativa de suicídio - a OMS (2014, p. 12) considera tentativa de suicídio ao comportamento suicida não fatal e refere-se ao autoenvenenamento, autoinjúria ou autodanificação que pode ou não ter um resultado fatal.

As tentativas do suicídio diferem do para-suicídio, pois nas tentativas do suicídio o nível de intencionalidade suicida é superior em relação ao para-suicídio (Silva, 2013, p.11). O parassuicídio relaciona-se aos comportamentos de risco. Em cada morte de um adulto por suicídio há mais de 20 tentativas de suicídio (OMS, 2014, p. 9).

As tentativas de suicídio são mais comuns entre jovens e no sexo feminino, enquanto que os suicídios são mais frequentes no sexo masculino e nos idosos, por exemplo, ingestão excessiva de substâncias psicoactivas (Idem);

Ideação suicida - é alimentação persistente da ideia de se matar, mas que nunca seja a ser realizada. É pensar constantemente em acabar com a própria vida e não consumar o acto.
Existem vários tipos de suicídio, determinados de acordo com a área de pesquisa de quem os classifica, aqui iremos apresentar apenas os tipos de suicídio na perspectiva sociológica (que é a nossa área de interesse), de acordo com o clássico do estudo sociológico do suicídio, Émile Durkheim.

Em Durkheim (2000) há três tipos de suicídios: (1) O suicídio egoísta, que resulta da existência de pouca integração social ou pouco desenvolvimento de laços sociais dos indivíduos na sociedade; (2) suicídio altruísta, que resulta da extrema integração social do individuo na sociedade ao ponto de perder a sua identidade como pessoa e acredita que sua morte pode ser um benefício para a sociedade; e o (3) suicídio anómico, que resulta da fraca regulação da sociedade, ou seja, quando as normas da sociedade não correspondem aos objectivos de vida do individuo.

  1. Ideias sobre o suicídio ao longo da história
Ao longo da história, o suicídio foi conotado de diversas formas, ora como um acto corajoso, ora como pecado, ora como crime, ora como um mal, ora como patologia e loucura (Cfr. Pedro, s/d.: 2).

Na Grécia antiga, os gregos só se suicidavam pelas melhores razões possíveis: por pesar, por princípios patrióticos ou para evitar a desonra. Ou seja, os gregos toleravam o suicídio e até o louvavam, desde que a pessoa apresentasse à justiça razões suficientes para consumar o acto (Cfr. Alvarez, 1999, p. 61, Durkheim, 2000).

Já os romanos, não viam o suicídio com medo nem com repulsa, mas com dignidade e segundo os princípios que haviam escolhido para orientar as suas vidas. Para eles, “viver de forma nobre também significava morrer de forma nobre e no momento certo” (Alvarez, 199, p. 75).

Os romanos somente puniam o suicídio se fosse feito sem motivos justos porque o consideravam irracional e não crime, ou seja, na lei romana o suicídio era um crime estritamente económico e não uma ofensa nem violação da moral nem violação da norma religiosa, mas apenas contra os investimentos de capital da classe proprietária de escravos ou do tesouro do Estado (Ibid., p. 75-76).

Portanto, a Europa pagã, isto é, antes da introdução do cristianismo, tolerava o suicídio, porém quando se introduz o monoteísmo cristão há certa intolerância religiosa e também do suicídio, considerando-o um crime capital baseando-se nas ideias duma das leis do Pentateuco “não matarás” e do reforço que Santo Agostinho faz sobre essa lei (Ibid., p. 65).
Segundo Agostinho de Hipona o suicídio é “homicídio de si”. Para o santo, quem tira a sua própria vida é homicida e a culpa pela sua morte é mais grave quanto mais inocente terá sido a causa da morte (Agostinho, 2006; p. 149).

Toda a Idade Média condenou o suicídio até que, com a Revolução Francesa, que pregava como valores essenciais, a liberdade, a igualdade e a solidariedade, foram abolidas as medidas e leis condenatórias contra o acto de matar-se.

Actualmente o suicídio é socialmente (não necessariamente do ponto de vista legal) condenado pela maioria das sociedades, em particular, e aquele que é usado como método para a prática do terrorismo por quase todas as sociedades, no geral (Shikida et al, 2006 p. 5).

  1. A dimensão social de suicídios
Segundo Durkheim (2000), identificar as causas individuais de suicídios contribui para compreender as motivações pessoais que levaram o indivíduo a se matar, porém não contribuem pra explicar as variações regionais da taxa social de suicídios. Entretanto, em Durkheim o suicídio é um fenómeno social e cada sociedade tem certa predisposição para certa taxa social de suicídios, baseada no nível de integração social dos indivíduos. Quanto mais profunda for a integração social, menor será a probabilidade de que os indivíduos venham suicidar-se e quanto menos profunda a integção social, maior será a probabilidade de que os indivíduos se suicidem.

De acordo com Netto (2007) os suicídios são determinados pela sociedade em que acontecem; sendo, na esteira de Berger e Luckman (2004), uma construção social da realidade, vinculada ao contexto histórico-social dessa mesma realidade. As circunstâncias do ambiente físico,  socioeconómico e cultural no qual as pessoas nascem, vivem, trabalham e envelhecem influenciam, positiva ou negativamente, a saúde pública mental (Loureiro, 2018; p. 4).

Entretanto, as causas sociais tem primazia em relação as causas psicopatológicas, pois que, segundo Adam e Herzlich (2001), as doenças têm um carácter histórico, pois resultam da realidade histórico-social em que aparecem, ou seja, "de complexas interacções entre processos orgânicos e factores sociais" (Ibid. p. 11). Por exemplo, a depressão é conhecida como “a doença da modernidade” porque, segundo Simmel (2005), a sociedade moderna capitalista caracteriza-se pelo distanciamento e pelo anonimato, o que cria problemas psíquicos e aumenta o índice de transtornos mentais. Entretanto, o social relaciona-se directamente com o psíquico, na medida em que a realidade social cria e intensifica os problemas psíquicos (Pedro, s/d.: 7).

Dessa forma, na investigação sobre as causas dos suicídios, as ciências sociais e ciências do comportamento, devem considerar o papel da sociedade, avaliando os seus aspectos socioeconómicos e culturais (Pedro, s/d.: 1).

Portanto, “a classificação das diferentes causas do suicídio deveria ser a classificação dos próprios defeitos da nossa sociedade” (DA SILVA, 2012, p. 4).
Uma taxa social elevada de suicídios denuncia o mal-estar da sociedade em que se verifica, por isso que o suicídio é um fenómeno social que deve ser tomado a sério no sentido de se prevenir.

  1. Deixar-se partir?
Independentemente das causas, dos meios e das consequências do suicídio, este é uma decisão pessoal, que resulta da liberdade humana de decidir sobre a sua vida, o seu próprio destino. Cada ser humano é dono das suas próprias escolhas, boas ou mas, e da sua própria vida. Entretanto, o suicídio deve antes de mais nada ser entendido como um acto de expressão mais alta da liberdade humana, porém este acto de expressão pode ser, do ponto de vista moral e legal, colocado em causa devido às consequências sociais que dele advém ou podem advir.
No entanto, com o intuito de colher os juízos morais em volta do acto de tirar a sua própria vida, convidamos ao estimado leitor a reflectir e responder a questão: deixar-se partir? Porquê?



[1] Provem de parassuícidio - acto ou comportamento não fatal, eventualmente não habitual num dado individuo e com o qual ele não tem clara intenção de morrer, mas no qual se arrisca a danos em si mesmo (mais ou menos graves) caso não exista intervenção de outrem (Oliveira et all, 2001: 510).
[2] Vide no Youtube

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Autonegrofobia: sequela neurótica do colonialismo português em Moçambique


Resumo
O artigo analisa a autonegrofobia como consequência psicológica do colonialismo português em Moçambique. A autonegrofobia é um conjunto de comportamentos neuróticos de autoalienação,  autonegação e autodepreciação que os negros manifestam perante a si próprios e no encontro com os brancos. Perante a sua ontologia e cultura, o negro moçambicano manifesta comportamentos de rejeição da sua estética (cor da pele, cabelos, etc), dos seus valores culturais, dos seus nomes e línguas maternas em favor de valores, nomes e línguas metropolitanos e; perante o branco, manifesta comportamentos de auto-inferiorização e de patronização do branco. Estas atitudes neuróticas, acreditamos que são sequelas que herdamos do colonialismo português e das suas estratégias de dominação colonial. Diante deste problema, uma educação humanista, afrocêntrica e libertadora teria um papel muito importante na descolonização mental dos negros moçambicanos. O artigo resulta da revisão bibliográfica, que consistiu na recolha de obras que versam sobre o assunto em questão, na sua leitura e interpretação acompanhadas de reflexão filosófica.

Palavras-chave: colonialismo, racismo, autonegrofobia, educação.

      1. Do conceito de raça à ideologia racista

Depois de toda história de humilhação racial do negro causada pelo narcisismo e etnocentrismo europeu. Depois de tanta depreciação ontológica, sofrimento e inferiorização, o negro vê-se ontologicamente agrilhoado, a sua mente encontra-se oprimida de tal maneira que se torna difícil devolvê-lo o seu orgulho ontológico.

O negro com que convivemos nos dias de hoje, revela-se mais racista, não racista contra os brancos mas contra o próprio negro (autonegrofobia). Este racismo manifesta-se no seu relacionamento com o branco: patronização do branco e na cortesia que tanto manifesta quando o encontra; manifesta-se também nos sonhos de casar ou possuir uma branca ou mulata como condição de elevação do seu estatuto sócio racial, na consideração como indicador da beleza e da bondade a cor mais clara ou branca (quanto mais clara a pele mais pura, mais bela e mais boa). Manifesta-se na rejeição da sua cultura, das línguas maternas, dos nomes e valores tradicionais em favor de nomes e cultura ocidental. Para esta desontologização do negro moçambicano, Portugal optou por usar quatro estratégias principais de opressão: a escravatura, a educação assimilacionista, a colonização geopolítica ultramarina e as missões católicas. Todas estas estratégias, tinham como suporte a ideologia racista europeia.

1.1 O racismo

O conceito de raça traz já consigo, logo que se pronuncia, marcas de racismo, pois que distingue os homens não apenas tendo em conta as características biológicas e culturais, mas sobretudo em termos de superioridade e inferioridade da humanidade de uns em relação aos outros. O que significa que logo que falamos de raça, acabamos por desaguar no conceito de racismo.

Segundo o Dicionário Eletrónico Houais [1]o conceito de raça pode ser definido como sendo a “divisão tradicional e arbitrária dos grupos humanos, determinada pelo conjunto de carácteres físicos hereditários (cor da pele, formato da cabeça, tipo de cabelo etc.)”. Dos indícios que caracterizam uma raça predomina a cor da pele, por isso que se diz “raça negra”, “raça branca”, “raça amarela”.

Para Achile Mbembe[2], “raça é uma das matérias-primas com as quais fabricamos a diferença e o excedente”. Este vai mais longe, ao afirmar que o conceito de raça tem uma bagagem de perversidades, terror, sofrimento e, eventualmente, catástrofes. “Na sua dimensão fantasmagórica, é uma figura da nevrose fóbica, obsessiva e, porventura, histérica[3]”. Entretanto, segundo Mbembe[4], a raça não é uma realidade físico-natural nem antropológica ou genética. Para ele a raça é uma construção fantástica e ideológica para substituir as antigas formas de lutas (de classes, de sexo) e legitimar a luta de raças, isto é, a opressão de raças consideradas inferiores pelas raças que se consideram superiores.

O termo racismo nasce do próprio conceito de raça. Segundo George M. Frederickson[5] o termo “racismo”, embora tardio em relação ao próprio racismo, surge na década de 30 para designar as teorias que fundamentavam o anti-semitismo nazi. Frederickson[6] classifica o racismo em biológico (baseado em características biológicas, por exemplo, cor da pele), cultural (negação do outro devido aos seus hábitos, costumes e valores), a xenofobia (hostilidade contra o estranho, o Outro). A xenofobia não é em si racismo mas ela pode ser uma manifestação racista ou ponto de partida do racismo.

Frederickson[7] avança que o racismo fora institucionalmente inventado pela religião cristã na Idade Média, tendo primeiramente se manifestado em forma de antijudaismo. O antijudaismo transforma-se em antisemitismo: o judeu na Europa medieval não era visto como um ser humano mas sim como um animal demoníaco, pecaminoso e perigoso para a propagação da fé cristã. Foram estas as premissas que justificaram o massacre dos judeus na Europa, principalmente pelo regime nazi.

A cor negra era simbolicamente associada ao mal e à morte. Simbolicamente porque o racismo contra o negro aparece como uma interpretação negativa da cor negra que reina (~va) na cultura ocidental. Por exemplo, Fredrickson[8] conta-nos que os demónios eram representados como tendo pele escura e, em contrapartida, os anjos são representados com a cor branca, símbolo de pureza e da santidade.

 Até hoje, nenhuma mulher deve se apresentar vestida de cor branca diante do papa, pelo contrário deve-se vestir de negro na medida em que acredita-se que não tem tal nobreza pura igualada à do papa, que se veste de branco, ao ponto de uma mulher se vestir de tal maneira na sua presença. Assim, a cor negra é sinal de inferioridade quanto à pureza espiritual.

A Europa, ávida de poder e ganância, inventou mitos que legitimassem o seu poderio sobre os outros povos (não-europeus), alguns dos quais afirmam o mundo ocidental como centro do mundo, “o país natal da razão, da vida universal e da verdade da Humanidade[9]”. O resto do mundo, em geral, e a África, em particular, representam o mundo estático, amoral, acientífico, ahistórico e semi-humano.

Foram estas as premissas que ditaram e justificaram a opressão mascarada sob a forma de evangelização libertadora em África, em particular em Moçambique. Para garantir a colonização e opressão dos moçambicanos, Portugal optou por usar, dentre várias estratégias de opressão, a educação assimilacionista.

      2. A Educação Colonial portuguesa e a opressão em Moçambique

Na Obra “Estatuto e Axiologia da Educação em Moçambique”, Ngoenha faz um inventário dos valores transmitidos pelos paradigmas educacionais moçambicanos vigentes na era colonial, dentre os quais, destacam-se dois paradigmas: a educação missionária e a educação colonial portuguesa.

A educação missionária suíça aparece no final do séc. XIX e pretendia fazer-se, paradoxalmente, libertadora através da colonização cristã e protestante, em oposição à colonização portuguesa, opressora. Para tal objectivo, segundo Ngoenha[10], esta educação encarregou-se de criar uma nação tsonga, depois moçambicana e não suíça. Para isso, era preciso que a educação se baseasse nas culturas e línguas locais tsonga. Contudo, esta educação carregava consigo um “cristianismo eurocêntrico e seus condicionamentos históricos e culturais.”

No começo, a educação missionária repudiava a educação colonial portuguesa e viu-se a prosseguir em paralelo com esta última, o que, tendo sido visto como ameaça para os objectivos da educação colonial portuguesa, levou esta última a impor a outra a servir aos seus interesses assimilacionistas. Por isso que para Ngoenha, não é pertinente a separação entre a educação missionária e a colonial portuguesa. Pois, os portugueses confiaram às missões católicas as tarefas de transmitir valores do interesse colonial. O papel fundamental da educação seria o de “aportuguesar os indígenas” como forma de melhor controlar e oprimir. Esta educação teria que ser contrária à iniciada pelas missões. Se a das missões era baseada nas culturas locais, a portuguesa tinha que ser baseada na língua portuguesa, na história e geografia de Portugal. As línguas tsonga só poderiam ser usadas, num primeiro momento, na educação eclesiástica e, num segundo momento, como servas da língua portuguesa, ou seja, como médiuns da compreensão e aprendizagem do português. Nesta educação os próprios nomes dos indígenas eram rejeitados e punha-se como condição de ingresso às escolas coloniais a atribuição de um nome português.

Também tinha como objectivo, formar indígenas para actividades servis: sapateiros, alfaites, barbeiros, etc. Assim, como afirma Ngoenha[11], “os programas de educação luso-centrados, não tinham em conta a cultura material de Moçambique […]” e “era um factor de desnaturalização enorme para os indígenas em Moçambique”.

As missões traíram os seus próprios objectivos, ditos libertadores, em favor dos objectivos educacionais coloniais portugueses como forma de evitar conflitos e encerramento das missões pelo governo colonial português. Daí, resulta que a educação que se verifica é uma educação não mais que se julgava com carácter filantrópico e “libertador” mas sim uma educação colonial dominadora e opressora. Para além da educação, o governo colonial português usou várias estratégias de opressão como, por exemplo, a estratégia geopolítico-ultramarina, as missões católicas e a escravatura.

3.   A política geopolítico-ultramarina, as missões católicas e a escravatura

Na estratégia geopolítico-ultramarina, Portugal estende o território de exercício de soberania para Moçambique, passando a considerar este último uma província ultramarina e considerando moçambicanos assimilados, cidadãos portugueses.

Esta estratégia pretendia fazer acreditar aos moçambicanos que Moçambique era uma extensão de Portugal além fronteira e, como tal, os moçambicanos tinham que se sentir estrangeiros (portugueses) no seu próprio país, da sua própria cultura e valores.

A estratégia de escravatura pretendia fazer acreditar aos moçambicanos que não passavam de animais domésticos, prontos a servir ao branco. Disto faz testemunho Ngoenha[12] quando afirma:

Usando muitas vezes métodos violentos, os europeus começam a impor o seu sistema de administração, de valores e crenças nas populações indígenas. É uma campanha para conquistar as terras e as almas. Foram construídas doutrinas com a pretensão de mostrar a superioridade do branco perante o negro.

As missões católicas pretendiam que os moçambicanos abandonassem as religiões autóctones e suas crenças, que rejeitassem os seus deuses e suas práticas tradicionais, colocando o cristianismo como uma religião universal que adora o “verdadeiro” Deus. Daí, as crenças tradicionais afro-moçambicanas passam a ser cunhadas com termos pejorativos de “superstição”, “feitiçaria”, “idolatria”, etc.

A história conta que foram 5 séculos de colonização, submissão, humilhação e opressão do negro moçambicano pelos portugueses, o que acarreta graves consequências psicológicas aos moçambicanos de hoje.

O grande afrocentrista, Molefi Kete Asante[13], constata que durante os 5 séculos passados os africanos foram cultural, económica, religiosa, política e socialmente marginalizados pela Europa e, a África tem sido vista como periferia desta última, o que tornou os próprios negros mentalmente colonizados.

    4. Consequências psico-sociais da opressão colonial portuguesa em Moçambique

Entendemos por consequências psico-sociais aos resultados comportamentais do homem em relação com outros homens e consigo mesmo originados por determinadas causas, neste caso, pela opressão colonial portuguesa.

O comportamento humano é sempre resultado de uma certa forma de pensar, o corpo é expressão do pensamento, ou seja, o corpo é já uma linguagem enquanto manifestação do que se pensa. Por sua vez, o pensamento é condicionado, seja política, social, geográfica e economicamente.

Aqui ater-nos-emos às consequências psico-sociais social e politicamente condicionadas pelo regime colonial. Para já, vejamos algumas das consequências apontadas por Ngoenha[14]:
A superioridade da raça branca não era só uma doutrina praticada na Europa. Também foi assimilada pelos mulatos e negros que das Américas regressavam à África. Muitos deles tiveram uma atitude altiva, chegando a evitar misturar-se com os africanos que habitavam originalmente aqueles países. Até importaram formas de vestir dos seus antigos senhores nas Américas, tomando praticamente o seu lugar na relação social com os “irmãos” que cá ficaram, chegando ao ponto de, em alguns casos, se evitar deliberadamente a miscigenação através de casamentos entre os “regressados” e civilizados e os “nativos” que ficaram.


Estas sequelas neuróticas verificam-se ainda hoje em Moçambique, se calhar de forma mais grave ainda, apesar de termos já passado quatro décadas após a independência. Assim afirmamos por experiências na convivência com os irmãos mentalmente oprimidos, na qual fomos detectando comportamentos neuróticos inconscientes de alienação, autodepreciação e autonegação. 

A sociedade moçambicana de hoje está cada vez mais ocidentalizada. Esta ocidentalização dos moçambicanos reflecte-se nos valores, nas crenças, no cultivo da cultura, na indumentária, no uso da linguagem, no comportamento e relacionamento interpessoal que manifestam diante de si mesmo e dos outros (negros e brancos). Valores alheios são cultivados cegamente como se fizessem parte da nossa cultura. Temos cada vez mais verificado a predominância da dólar-cracia como valor supremo,  em detrimento do humanismo e solidariedade que caracterizam as culturas africanas. A música mais ouvida e elogiada não faz parte da nossa cultura, fala-se de rock, pop, electrónica, etc, em detrimento da marrabenta, da Makwaela, da pandza, etc. Os jovens vestem-se como se fossem americanos, dizem-se swaggs; as raparigas já não dão tanto valor à capulana e ao lenço, estes são sinónimos de tradicionalismo, no entanto, são usados somente em cerimónias tradicionais ou especiais como forma de mostrar respeito na forma de se vestir.

Quando alguns moçambicanos se fazem crentes nalgumas igrejas evangélicas de expressão brasileira, em menos de seis meses, já não falam mais o português moçambicano, mas sim o brasileiro, falam como se tivessem uma batata na garganta, rocam e maltratam as palavras.

Nos serviços sociais institucionais, por exemplo, restaurantes, os negros privilegiam o atendimento ao branco, pois este é símbolo de riqueza, do patroísmo, de senhoria, e o negro vê-se a si próprio como símbolo de pobreza, servidão, escravatura, senão até a feiura.

Por falar em feiura, homens e mulheres lutam pelo enbranquecimento da pele, não se importam se essa clareza da pele trará beleza ou feiura, nem com as consequências de saúde que advém dos produtos químicos e injecções aplicados para tal, apesar de a OMS (Organização Mundial de Saúde) ter alertado sobre os perigos desses produtos. Para ele(a)s, a cor clara é o sinónimo de beleza, a isto nós chamamos de estética de autonegação ou autodepreciação enquanto que para Frantz Fanon[15] é uma neurose.

Além disso, a maior conquista amorosa do moçambicano/a é namorar ou desposar um/a branco/a, não se importando com o estatuto social, moral nem estético da pessoa que desposa, desde que seja branc0/a já é em si uma grande conquista. Geralmente, isto leva jovens a namorarem ou se casarem com velhos/as; ministros/as a se casarem com criadas/os de hotéis, só porque são branco(a)s, o que não aconteceria se ambos fossem negros.

Salienta-se que não há nenhum mal em alguém casar-se com uma pessoa de estatuto inferior nem de raça diferente da sua, o mal está no facto de as mesmas pessoas não poderem casar uma negra/o nas mesmas condições desfavoráveis que o branco/a se encontra. Neste caso, o casamento com branco (a), é visto como uma tentativa de elevação do estatuto social inferior para estar em pé de igualdade com a raça branca. Quando um/a negro/a conquista ou é conquistado/a por um/a branco/a a expressão de novidade “acertei um/a white…” não falta.

O mais triste é o facto de estes comportamentos atingirem mais a camada jovem e adulta que se diz culta. Mal alguns compatriotas académicos saem para estudar no estrangeiro, ao voltar tomam o país acolhedor como referência ideal em todos os aspectos e maltratam os ouvidos dos que cá ficaram e os circundam com as expressões “lá em Portugal lá…”. Neuróticos da estratégia geopolítica ultramarina, depreciam as beldades do seu próprio país e tudo de bom que nele podemos encontrar como referência mundial. Mal ficam 6 meses em Portugal, ou adoptam um sotaque português ou, ao regressar ao país natal, já não conseguem ambientar-se como antes, porque o ambiente de cá de casa é desagradável e inóspito. Fanon[16] chama a estes autonegrófobos de “os regressados” (les arrivés).

A estes comportamentos de auto alienação, autodepreciação e autonegação por ser negro, nós chamamos de autonegrofobia. Por autonegrofobia pretendemos designar uma série de comportamentos que os negros manifestam no medo de ser negros, ou seja, um conjunto de comportamentos que exprimem a auto-negação (consciente ou inconsciente) de poder participar da humanidade enquanto a cor da pele for negra e enquanto identificar-se pela cultura e pelos valores afro-moçambicanos.

Estas formas de vermos a nós próprios é produto não apenas do colonialismo e opressão portuguesa, mas também da ignorância. Do colonialismo e opressão portuguesa, porque fomos por eles alienados e desontologizados. Da ignorância, porque ignoramos as nossas raízes, o nosso passado, a nossa história e, portanto, os nossos verdadeiros valores, as nossas identidades, as nossas culturas. Mas o que devemos fazer diante desta colonização mental?

5.    Educação como instrumento de libertação mental

Para nós, se quisermos nos libertar desta colonização mental, deste deslocamento cultural, temos que repensar a tradição e a modernidade, temos que repensar o passado e o presente no sentido de projectarmos, com um mínimo de conhecimento de causa, o futuro.
Para Kwame Gyekye[17] a tradição e a modernidade não se desencontram, pelo contrário, são inseparáveis. Segundo ele, toda a modernidade é modernidade de uma tradição.

Nesta perspectiva, não é lógico falar-se de modernização da tradição, dado que a modernidade já é em si modernidade de uma tradição, assim como o presente é sempre produto do passado. A tradição moderniza-se a si mesma, partindo de dentro de si mesma. Contudo, nenhuma cultura anda sozinha, todas as culturas desenvolvem interacções com culturas de outros povos e emprestam-se mutuamente alguns indícios. É este empréstimo mútuo de alguns indícios que contribui (ou deveria contribuir) para a cultura universal. É das culturas particulares que se pode atingir a cultura universal e não o contrário, como se vem passando nesta era de globalização, na qual participamos, sem sombra de dúvida, como globalizados e o Ocidente como globalizante.

Mas com que meio podemos repensar na tradição e modernidade, o passado e o futuro?
Nós acreditamos que o motor de transformação social mais poderoso do nosso planeta, é a educação. Para nós, tal como para José P. Castiano[18] do Prefácio da obra de Ngoenha “Estatuto e Axiologia da Educação”, “o saber (para nós equivale à educação) pode ser um instrumento de libertação”, isto significa, segundo Castiano, “fazer com que cada um de nós, que cada país, se manifeste firme nas suas tradições, sem contudo negar o direito de existência das outras”. Portanto, para nós, e na esteira de Edward Wilmot Blyden, da mesma maneira que a educação foi usada como instrumento de opressão pelo colonialismo português, ela pode ser também usada como instrumento de libertação mental. No entanto, a tradição e modernidade, o passado e o futuro devem fazer os conteúdos dos currículos locais da nação moçambicana.

Alberto Viegas ensinou-nos que “a única forma de entrarmos no universal hoje, é com os pés bem firmes nas nossas culturas particulares”. Deste modo, os saberes locais devem ser incluídos na Academia, não para que sejam modernizados como quer Castiano, mas para que se possam modernizar a partir si próprios, ou seja, para que através da atitude critica e da criatividades passados pensar nas novas formas de as nossas tradições tomarem um carácter novo, partindo delas mesmas.  Penso que, falar de modernização das tradições pressupõe a busca de referências dessa modernização fora dessa tradição, o que significa globalização.

Com a inclusão dos saberes locais ditos tradicionais no currículo, o objectivo não será somente o de poderem se modernizar, nem somente de que possam ser submetidos à reflexão crítica mas, também, o de que possam desmistificar as mentes dos moçambicanos no que tange ao mito de que só os brancos detêm ciência e educação requeridas por um ser humano para que seja ser humano. Estes saberes deverão ser relacionados às grandes contribuições (invenções) dos negros (africanos ou não africanos) para o progresso do espírito humano. O que implica a inclusão da história afrocentrada da arte, da ciência, da política, da economia, da religião, etc. desde que os negros tenham dado uma grande contribuição.

Somente enquanto as escolas moçambicanas puderem reflectir sobre a alienação mental e cultural poderão, os moçambicanos, tomar a consciência de ser mental e culturalmente oprimidos. Somente enquanto a pedagogia praticada nas escolas moçambicanas usar os métodos libertadores (o diálogo, a conscientização, a problematização) é que os moçambicanos poderão ter a oportunidade de se reconhecer como seres livres, mental e culturalmente. Somente enquanto a escola, for humanista e tiver como valor último o humanismo, é que poderão os moçambicanos perceber que a dignidade humana não é legitimada por uma ontologia e culturas alheias, e que todo homem tem dignidade e, por conseguinte, deve se tratar e ser tratado como tal independentemente da sua cor, cultura, proveniência geográfica, género sexual, orientação sexual, religião, etc. Portanto, os métodos da pedagogia do oprimido de Paulo Freire são também importantes para a libertação das mentes oprimidas de todo o mundo, em particular, de Moçambique.

Conclusão

No desenvolvimento deste artigo, partimos da ideia de que o conceito de raça leva-nos a desaguarmos no conceito de racismo, pois que este conceito foi criado para diversificar e hierarquizar os homens em raças superiores e inferiores.

Frisamos que o Ocidente, ávido de poder e ganância, antes da ocupação do espaço do Outro, inventou mitos que legitimassem tal ocupação do espaço de Outro e a alienação da sua alma, criando ideologias racistas segundo as quais, o Outro não desenvolveu a razão, é amoral e, por isso, não participa do movimento histórico. Daí, a colonização e opressão do Outro era uma tarefa libertadora da natureza semi-humana que este Outro manifesta.
Para tal intento, Portugal, ao colonizar Moçambique, optou por desenhar estratégias de dominação racial que são: a escravatura, a política geopolítica ultramarina, educação assimilacionista e a missões católicas e protestantes.

A escravatura inculcou aos moçambicanos o espírito servil, fazendo-os acreditar que nasceram para serem instrumentos de trabalho do branco. A política geopolítica ultramarina aportuguesou os espíritos dos moçambicanos, passando estes até hoje a tomar como país de referência eldorado todo o país ocidental acolhedor, inclusive Portugal. A educação assimilacionista, transmitiu valores portugueses e eurocentrados, que até hoje tornam os moçambicanos autoalienados, autodepreciativos e autonegativos. A estratégia das missões católicas fez com que os moçambicanos hostilizassem as suas crenças religiosas tradicionais, chamando-as até hoje de superstições, feitiçarias e idolatrias.

A estes comportamentos de auto-alienação, autodepreciação e autonegação, chamamos de autonegrofobia.

Autonegrofobia é uma série de comportamentos que os negros manifestam de medo de ser negros, ou seja, um conjunto de comportamentos que exprimem a auto-negação (consciente ou inconsciente) de poder participar da humanidade enquanto a cor da pele for negra e enquanto identificar-se pela cultura e os valores africanos (moçambicanos).
Em resposta a esta problemática, vimos a necessidade de nós moçambicanos repensarmos a tradição e a modernidade, o passado e o presente, com vista a melhor projectarmos o nosso futuro para a libertação mental. Para tal, o desenho e implementação de uma educação humanista, afrocentrada e libertadora seria necessário para a nossa libertação.

Bibliografia

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_______________. Das Independências às Liberdades. Maputo, Edições Paulistas-África, 1993.




[1] Dicionário em formato digital sem informação bibliográfica
[2] MBEMBE, 2014: 70
[3] I bidem: 25
[4] Ibiem: 39
[5] FREDRICKSON, 2014: 14.
[6] Idem.
[7] Idem
[8] Ibidem: 28.
[9] MBEMBE, 2014: 27
[10] [10]Ngoenha, 2000; 32-33.

[11] Ngoenha, 2000: 20
[12] Ngoenha, 2000: 20
[13] Cfr. Artigo de Molefi Kete Asante “Afrocentricity: the theory of social change”. s/l. s/ed.s/p.
[14] Ngoenha, 2005: 197.
[15] Fanon, 2008: 27.
[16] Ibidem: 34.
[17] Cfr. GYEKYE, Kwame. Tradition and Modernity. 1997.
[18]Cfr. Castiano in Prefácio; Ngoenha, 2000: 9