terça-feira, 26 de maio de 2020

A CORRUPÇÃO POLITICA EM ÁFRICA: UM PROBLEMA MORAL EM KWAME GYEKYE

Resumo-introdutório

Neste artigo pretendemos reflectir, juntamente com o filósofo ganês Kwame Gyekye (1939), sobre a problemática da corrupção política que se verifica em África desde as independências, no sentido de mostrar como se manifesta no contexto africano; explicar como algumas práticas tradicionais fomentam conduta política corrupta, e defender que a corrupção politica, apesar do seu nome, é fundamentalmente um problema moral e que uma séria e profunda revolução e comprometimento com os nossos valores e princípios morais será a mais adequada resposta terapêutica ao fenómeno de corrupção política. Não só, mas também uma educação moral, cívica, democrática e transformadora poderia também ajudar a erradicar o fenómeno.

Palavras – chave: Corrupção política; Revolução moral; Educação cívica e moral; Educação democrática; Kwame Gykye.

A corrupção política em África

A corrupção política é um problema de todos os Estados do mundo, ele encontra-se em toda a parte, entre os países pobres e ricos, desenvolvidos ou em via de desenvolvimento, tradicionais e modernos. Todavia, ela manifesta-se de diversas maneiras e de proporções diferentes de uns países aos outros, e produz efeitos devastadores diferentes nos diversos países do mundo. Países africanos pós-coloniais são inegavelmente os piores países com elevado índice de corrupção politica. Isto provavelmente constitui uma das mais sérias fontes de hemorragia financeira que os países africanos[1] em via de desenvolvimento sofrem e constantemente anula os seus esforços para o desenvolvimento e é um dos factores que causa as guerras civis e instabilidade política em África. Como diz Kwame Gyekye  “é a maior doença dos governos africanos” (GYEKYE, 1997:192).  

A organização Transparência Internacional TI) estima que a corrupção em África retira 20 a 30 porcento do financiamento da provisão dos serviços básicos[2]. E tem sido mencionado nos jornais e estudos sobre a governação politica que os líderes africanos extraem biliões de dólares todos anos do Orçamento do Estado dos seus países[3]. Em 1991, as Nações Unidas, estimaram que as elites governantes esvaziaram mais de 200 biliões de dólares norte-americanos para fora de África. O economista etíope, Ayittey (2002), concorda que esta soma era mais que a metade das dívidas estrangeiras e que excedia a soma de ajudas dos países estrangeiros para os países africanos.

O que é corrupção política?

Segundo o dicionário jurídico, por corrupção política refere-se aos crimes cometidos no exercício de certas funções públicas (PRATA et al, 2008: 121).

Khan (1996) define a corrupção como o acto de desvio das leis formais da conduta que regem as acções de alguém que ocupa uma posição de autoridade devido a razões pessoais (riqueza, poder, status. Segundo esta visão, corrupção política é um tipo de corrupção que envolve o não cumprimento das leis por parte dos funcionários públicos, contudo, nem todo o não cumprimento das leis por parte destes implica necessariamente corrupção politica[4].

Para Jain (2011) corrupção política é um acto em que o poder do funcionário público é usado para o ganho pessoal de tal maneira a contrariar as regras do jogo. Com estas duas definições percebemos que a corrupção envolve a violação de leis públicas e esta violação é cometida por um funcionário público que, geralmente, ocupa uma certa posição de relevo na instituição em que trabalha. Embora esteja certo que ela deve envolver as leis e funcionário públicos, nem sempre é necessariamente cometida por pessoas que ocupam posição de relevo, isto é, que detém o poder. Ela pode ser também cometida por simples funcionários do estado, por exemplo, professores, médicos, polícias, etc.

Segundo Kwame Gyekye (1995), corrupção política é todo acto ilegal, imoral, inautorizado do uso de uma certa posição ou serviço no aparelho do Estado para obter ganho e vantagens pessoais: os bens, os serviços, o património, as agências, as fontes e instituições do Estado. Corrupção política será, então, um acto de corrupção perpetrado contra o Estado ou suas agências por funcionários que ocupam um determinado cargo ou posição oficial em busca do proveito próprio. Política porque antónima de privado.

A corrupção política é geralmente associada a aceitação do suborno, mas não se limita nisso. Outros actos de corrupção política podem ser: negociatas, fraudes, nepotismo, ricochete, favoritismo, a apropriação ilegal dos fundos do Estado, etc. Por exemplo, uma figura política que deposita avultadas somas de dinheiro do Estado nos países estrangeiros, um funcionário que rejeita concorrentes bem qualificados para o emprego em detrimento dos não qualificados por razões pessoais, o polícia que aceita suborno para libertar um criminoso, o magistrado que perverte o curso da justiça em favor de um indivíduo que lhe suborna. Estes são alguns dos exemplos que caracterizam a corrupção política, podendo eles serem aplicados em todos os sectores de serviços do Estado e em todas as instituições do mesmo.

Causas da Corrupção Politica

Muitos cientistas têm apontado diversas causas da corrupção politica. Por exemplo, Oluwole Owoye e Nicole Bissecar defendem que a corrupção política é a manifestação da fraca ou má governação (bad governance), dos líderes políticos anti-democráticos e ditadores e das instituições pós-independência ineficazes[5]. Esta ideia foi bem sustentada por Julius Nyerere (1998) num artigo intitulada Marxism in Africa: Good Governance for Africa. Neste artigo Nyerere afirma que muitos dos problemas em África se devem a má-governação, entretanto, ele sugere que se melhore a governação de modo a possibilitar a consolidação da liberdade das pessoas e um desenvolvimento real das mesmas e, portanto, dos seus países.

 Para Herbert Werlins, citado por Gyekye, o crescimento de casos de corrupção política é sinal de uma fundamental desordem política (WERLINS apud GYEKYE, 1995:194). James Scott, também citado pelo mesmo autor, diz que a corrupção política é um evento político, isto é, as formas de corrupção podem estar relacionadas com o tipo de sistema político e com a natureza e velocidade com que muda a situação socioeconómica (SCOTT apud GYEKYE, 1995:194). Isto significa que o modo como o sistema político opera pode influenciar no aumento da corrupção. Por exemplo, num sistema político em que os candidatos a certos cargos públicos recebem contribuições de indivíduos singulares e não do Estado, existe o risco de que esses venham a retribuir essas contribuições em gesto de agradecimento após ocuparem os cargos e em uso deste para fins próprios. A decisão de recompensar os contribuintes eleitorais pode envolver a actos de corrupção. O candidato eleito pode sentir-se endividado aos que lhe terão ajudado a obter o cargo, enquanto que estes, por sua vez, esperam ser recompensados. Na tentativa de cumprir as suas promessas e de garantir a sua reeleição, o candidato eleito pode recompensar oferecendo emprego, contrato, e outros favores aos seus benfeitores, amigos, familiares e membros do seu grupo étnico. Também o sistema burocrático, cujos processos são demasiado extensos e longos fomentam a corrupção. Segundo Aidt (2003) sempre que a autoridade é delegada a uma burocracia, o potencial para a corrupção existe. Pelo contrário nas sociedades africanas tradicionais, porque demasiado pequenas, o sistema burocrático é também simples e, por isso, não fomenta muita corrupção.

Outra causa da corrupção política é a fraca liderança politica: dos fracos líderes políticos ou superiores políticos dificilmente pode-se esperar que venham a controlar os funcionários subordinados que cometem subornos e outras formas de corrupção política, isto, porque, sendo fracos lideres, não tem coragem para exercer controlo, ou talvez, porque sendo eles mesmo desonestos, não tem a capacidade de disciplinar os outros. Pelo contrário, líderes políticos deste carácter podem ignorar ou minimizar denúncias a actos de corrupção ou mesmo retardá-las neste tipo de casos.

A incapacidade, ou mesmo relutância para lidar firmemente com os funcionários públicos corruptos, especialmente os do alto cargo, pode originar do processo político que prende o líder cuja subida ao poder fora graças ao sustento, inclusive financeiro, das pessoas que já se encontram no poder. É neste caso que muitos tornam-se “lambe-botas”[6], não demonstrando a capacidade de denunciar actos de corrupção dos seus benfeitores, tem tido sempre a tendência de defendê-los a todo o custo. Também lideres políticos orgulhosos, que procuram dar a impressão de que os seus subordinados são pessoas credíveis podem silenciar denúncias de actos de corrupção.

A atitude de desinteresse, da parte dos funcionários do Estado, para com as instituições públicas, os interesses do Estado, pode incliná-los a actos de corrupção política porque aqui não existe o interesse comum mas apenas o individual. Ngoenha observou que em Moçambique a política se faz em função de regalias económicas que os candidatos procuram. Para ele, a principal diferença entre os partidos não reside hoje nos manifestos que se propõem implementar, na diferença de planos e visões do mundo e da sociedade. A única preocupação é aceder ao poder, como um meio para adquirir bens materiais e outras regalias. Isto é o que vem a criar conflitos e agravar as desigualdades sociais. Cria também o abismo entre ricos e pobres (NGOENHA, 2014:161).

O tipo de sistema social pode também explicar o fenómeno da corrupção política, de facto alguns sistemas sociais influenciam mais a incidência ou perpretação de actos de corrupção que outros. Tem-se acreditado que as sociedades capitalistas, por consequência individualistas, tem fomentado mais a corrupção do que sociedades comunitaristas porque, como se acredita, nas primeiras, os indivíduos dão mais ênfase aos interesses pessoais do que os da comunidade e, nas segundas, dá-se mais ênfase aos interesses da comunidade em detrimento dos do individuo. Mas segundo Gyekye, esta visão é falsa. Ele parte da ideia de que a maioria dos países africanos são mais comunitaristas do que individualistas mas mesmo assim são os que apresentam os mais escandalosos níveis de corrupção política. A razão que ele aponta é que no sistema de famílias alargadas das sociedades africanas um indivíduo tem duas responsabilidades: responsabilidade pela sua vida e pelos membros do seu grupo étnico. Estas responsabilidades são naturalmente onerosas e requerem uma certa posição económica pessoal para suportá-las. O funcionário público que tenha uma certa posição e que tenha acesso aos recursos públicos pode tomar a vantagem de usá-los para cumprir as suas responsabilidades e, portanto, a cometer actos de corrupção. Por outra, no sistema de famílias alargadas, com a sua rede de relações, fomenta o padrinhismo: espera-se do funcionário público que arranje emprego para os membros da família alargada seja na sua instituição seja noutra. Isto conduz ao nepotismo, que é um acto de corrupção politica. Ainda, no sistema comunitário, as relações sociais são geralmente alimentadas e mantidas através da troca de presentes entre os membros da comunidade, bem como a oferta de presente aos idosos, alguns dos quais possuam uma posição na comunidade como sinal de respeito ou cortesia. Neste caso não se trata de corrupção politica. Mas a oferta de presentes aos funcionários públicos com o objectivo de insinuá-los a oferecer favores pode originar a corrupção política porque, muitas vezes, após estas ofertas, torna-se difícil por parte de alguns funcionários recusar favorecer. Por isso, pode-se dizer que esta prática tradicional de oferecer presentes aos chefes idosos, ou aos funcionários públicos fomenta a corrupção politica (GYEKYE, 1997:195).

A pobreza económica de um país também pode fomentar a corrupção politica. Embora a corrupção política seja um problema global, ela ocorre com maior incidência nos países pobres. É o caso de Moçambique.

A falta de um sistema legal e institucional adequado e ou de controlo eficiente faz alguns funcionários públicos sentirem-se livres de cometer actos de corrupção porque vêem-se impunes.

A ausência de espirito de cidadania e patriotismo da parte dos membros da sociedade onde ocorrem actos de corrupção também a influencia. Pois onde existe espirito de cidadania existe a consciência dos direitos e deveres como cidadão e, no entanto, a coragem e vontade de denunciar publicamente actos de corrupção perpetrados pelos funcionários públicos; e onde não existe este estado da alma, a coragem e vontade de lutar contra este fenómeno é quase escassa e os cidadãos são indiferentes a estes tipos de crimes sociais, embora sejam os principais sofredores. Assim os corruptos políticos sentem-se livres de praticar este tipo de crime.

A ambição desmedida é um dos factores da corrupção. Todavia, existe uma ambição construtiva e batalhadora e outra destrutiva ou maquiavélica. A ambição construtiva é aquela em que o indíviduo faz do seu máximo esforço para conseguir realizar os seus sonhos e fantasias, enquanto que a ambição destrutiva é a que o individuo só se preocupa com os fins e, a todo o custo quer estes fins, sem se importar com os meios, dai maquiavélica[7]. Só esta última gera a corrupção.

Dentre várias causas que explicam o fenómeno da corrupção política, Kwame Gyekye lamenta o facto de se ignorar as circunstâncias morais e estas são vistas de uma forma supérflua. Para Kwame Gyekye a corrupção politica é crucialmente um problema moral e deve ser combatido a partir deste ponto de vista (Ibid.: 201).

A corrupção política como um problema moral

Como ficou dito anteriormente, segundo Gyekye, a corrupção política é um problema fundamentalmente moral. É uma poluição moral que afecta a função pública e a sociedade. Pois, na descoberta de actos escandalosos de corrupção politica, as pessoas comentam, com angústia e desespero, sobre o declínio da ética social e da falta de virtude, integridade e carácter nos funcionários públicos; assim, as pessoas não relacionam os incidentes de corrupção política com o sistema político da sua sociedade como tal, nem com as circunstâncias económicas dos funcionários acusados de tais actos de corrupção, mas eles dirigir-se-iam contra o carácter moral desses funcionários (Ibid.: 203).

Apesar de a corrupção política ser o tipo de corrupção perpetrada por alguns funcionários públicos, enquanto que as vítimas os bens e interesses do Estado, devem ser realmente vistos como resultado de fraqueza moral, de responsabilidade e de virtude. Isto justifica-se na medida em que todas as outras causas da corrupção política podem ser superadas tomando-se medidas concretas, mas nenhuma destas medidas poderia minimizar consideravelmente o problema da corrupção e, porque, circunstâncias morais não tem sido apontadas como factor determinante a este problema, o problema tem sido visto como que quase irresolúvel (Ibid.: 204).

Consequências da Corrupção Política

As consequências da corrupção política em África fazem-se sentir na pobreza ou na dificuldade dos países africanos em desenvolver-se; na agudização das desigualdades sociais, o que cria um fosso entre ricos e pobres; nos conflitos sociais, de greves a guerras civis; na desconfiança quanto a função do Estado; sobretudo, da falta de felicidade no seio da sociedade cujos dirigentes são corruptos.

Como combater a corrupção política?

Na verdade nem todas as estratégias de combate à corrupção são aplicáveis para todos os países. As estratégias para combater a corrupção devem adequar-se à realidade e às necessidades particulares de cada país.

Para Ayittey (2011) são necessárias cinco estágios de reforma para o combate à corrupção. O primeiro será a reforma intelectual, segundo a qual deve haver mais liberdade de imprensa e de expressão; o segundo, a reforma politica que se resume na introdução do pluralismo democrático; o terceiro, a reforma constitucional, defende que se deve limitar os poderes do executivo no controlo dos seis ramos: civil, comissão eleitoral, as forças de segurança, o poder judicial, os Mídias, o Banco Central; o quarto, a reforma institucional, defende o poder judicial e os Mídias independentes e; o quinto, a reforma económica, defende a remoção do controlo das velocidades dos preços e interesses e a liberalização do comércio e os câmbios estrangeiros.

Barack Obama diz que a Africa só poderá alcançar o seu crescente potencial com líderes que servem aos seus povos e não tiranos que se enriquecem às suas custas. Para ele a África deve se livrar de líderes corruptos se quiser sair do subdesenvolvimto. Entretanto a corrupção política, segundo ele, é uma questão de liderança. Desta forma, ele galvaniza as novas gerações de africanos a uma nova atitude, atitude de mudança, perante a gestão da coisa pública.[8]

Dado que a má-governação em Nyerere (1998) é a causa fundamental da corrupção, ele vê como solução a criação de boa governação em África como forma de remediar os problemas dos africanos. Para ele os governos africanos devem fortalecer os seus Estados em todos aspectos, de modo que possam dar aos africanos de outras gerações uma África melhor. Por um estado forte, Nyerere não entende um estado ditador (pois que para ele a didatura é por natureza fraca) mas sim como estado que, entre outras coisas, tem poder de actuar em favor do povo e de acordo com as suas aspirações. Nenhum estado é realmente forte senão se ao menos o seu governo tem o consentimento completo pelo menos pela maioria da população. O bom governo seria aquele que combinasse três elementos fundamentais: o primeiro, a aproximação ou compromisso com o povo e a capacidade de responder às suas necessidades e exigências, em outras palavras, democracia; o segundo, a habilidade de coordenar e trazer no balanço democrático as várias instituições criadas para responder aos interesses particulares dos cidadãos, ou grupos de cidadãos; o terceiro e último elemento, a eficiência com que funcionam as instituições (oficiais ou não oficiais) por meio das quais as decisões são conhecidas e implementadas por todo o país. Ele defende que o ingrediente necessário para a democracia baseia-se na igualdade entre os cidadãos e que todas as leis numa nação sejam aplicadas para todos os seus membros da mesma forma e sem excepção[9].

Segundo Khan as acções do governo não podem sozinhas erradicar o fenómeno da corrupção. Para ele a opinião pública tem um papel fundamental no combate à corrupção. A opinião pública é a força maior para criar um ambiente em que a corrupção não é aceita ou em que é condenada. Não só, mas também as escolas públicas exercem um papel importante na medida em que possam ser um centro de alerta e de resposta pública aos actos de corrupção. Khan sublinha também a necessidade de cooperação regional e o apoio internacional.[10]

Para Gyekye embora o sistema social e político influa na corrupção, a mudança dos comportamentos das sociedades tradicionais que a fomentam, isto é, o “padrinhismo”, os relacionamentos comunais, o parentesco e as obrigações e lealdades das famílias alargadas, não pode garantir sucesso na redução do fenómeno, pelo facto de as sociedades que não têm os mesmos comportamentos sofrerem também sérios problemas de corrupção. As razões gerais de toda a dificuldade de erradicar ou minimizar a corrupção política por estes meios, é que existe uma causa fundamental que são as circunstâncias morais. Portanto ele propõe dois tipos de revolução moral para a solução desse problema. Vejamos a seguir.

A revolução moral como medida para minimização da corrupção política em Gyekye

Uma vez que o problema da corrupção política é um problema radical, então exige segundo Gyekye, mudanças radicais e profundas nos valores morais, no comportamento e atitudes de ambos os funcionários públicos e outros membros da sociedade. Neste âmbito, Gyekye propõe dois tipos de revolução que são a 1) Revolução moral substantiva ou revolução moral no sentido substantivo e a 2) revolução no comprometimento moral.

1.      Revolução moral substantiva – envolve mudanças fundamentais nos paradigmas morais existentes ou nos sistemas conceptuais morais e a adopção de novos (GYEKYE, 1995: 206-207).

Esta revolução será, segundo Gyekye, um processo inconsciente, realizada não por um indivíduo ou grupo de indivíduos num determinado tempo como tal, mas resultará de uma lenta e progressiva procura de mudança nas circunstâncias económicas, deverá alimentar uma ética individualista com o crescimento mercantil e a passagem de uma produção agrária para uma produção industrial, para substituir-se a ética comunal existente.

Para nós o comunitarismo radical, deverá ser substituído pelo comunitarismo moderado: a procura do progresso pessoal e satisfação pessoal das necessidades básicas deve ter prioridade em relação à satisfação do seu grupo social ou família, sem, com isso, nos esquecermos que o nosso sucesso depende das pessoas que nos cercam e que acompanham as nossas vidas. Defendemos um comunitarismo moderado: que dá primazia ao individuo sem se esquecer que este não vive sem a comunidade e que precisa dela. Portanto, o “Eu sou, porque nós somos. E desde que sejamos, entretanto eu sou[11] deve dar lugar à máxima: “Eu sou, porque me esforço e o meu esforço reflecte a realidade social em que vivo. Entretanto, desde que me esforço e o meu grupo social existe, eu sou”. Esta máxima implica que não confio na ajuda nem no ser do outro para eu ser, mas dela necessito e posso precisar. Para nós esta maneira de convivência poderá atenuar o problema da corrupção, o espírito de parasita e dependência, a preguiça e a pobreza em África.

2.      Revolução no comprometimento moral – envolve a adopção de novos paradigmas comportamentais face a moral existente. Envolve um novo compromisso e cometimento positivo às leis e princípios aceites na nossa sociedade. Porque, segundo Gyekye, a corrupção política tem como uma das causas o fraco comprometimento com os valores, crenças e princípios morais da sociedade (Ibid.: 209-210).

Esta revolução consistirá em que, uma vez que se aceitem e se conheçam as normas morais que regem a sociedade, os membros dessa sociedade deverão agir em conformidade com elas. Enquanto na perspectiva da revolução moral substantiva os valores e crenças morais existentes são tomados como inadequados à realidade social particular, na perspectiva da revolução no comprometimento moral são implicitamente consideradas adequados. Nesta última o que se considera inadequado ou insatisfatório são as nossas respostas práticas e atitudes em relação aos valores e princípios morais existentes (Idem).

A questão que nos fica em dúvida ante esta posição tem a ver com a capacidade que o ser o humano tem para responder praticamente aos preceitos morais. Qual é a faculdade que torna o homem moralmente são, ou melhor, que facilita a aceitação prática e a adequação do homem às normas e princípios morais que regem a sua sociedade?

Partindo de Sócrates, passando por Platão até Aristóteles, a virtude consiste no conhecimento ou no uso supremo da razão. Para Sócrates quem conhece o bem age em conformidade com ele e quem age mal denota a ignorância do que é bom e justo. A sabedoria, nesse caso, seria faculdade determinante da accão moral e da justiça (ABAGNANO, 2006: 77, 127, 174).

Gyekye aponta que um dos problemas centrais da nossa vida moral é o da fraqueza moral: o problema de saber o que é certo e ainda fazer o que é errado, agir mal mesmo após um bom julgamento moral (GYEKYE, 1997: 210). Esta posição nos leva a concluir que a ideia socrática é insuficiente para explicar a capacidade moral.

De facto o intelectualismo socrático falha ao afirmar que basta conhecer o bem para o praticar. Esta ideia veio ser superada por Santo Agostinho, segundo o qual não basta conhecer o bem para o praticar mas é também preciso a vontade para praticar esse bem. E é na esteira da ideia da vontade moral que se situa o ganês.

Para Gyekye na revolução no comprometimento moral o conceito de vontade é fundamental, destaca-se como o mais brilhante na medida em que é mais relevante em todas as esferas de tradução das nossas convicções morais, intenções e decisões em acções. Quando sofremos tentações para fazer ou não alguma coisa, exercitamos a nossa força de vontade, uma certa tenacidade de propósito. Se o exercício da força de vontade for suficiente podemos vencer as tentações. Neste caso, os funcionários que se envolvem em actos de corrupção não o fazem porque ignoram a deontologia profissional mas porque não exercitam suficientemente suas capacidades morais e a força de vontade. Apesar de a vontade não poder ser mudada como tal, ela pode ser exercitada (Ibid.: 211)

Outra dificuldade que constatamos para praticar a moral através do exercício da vontade é o facto de Gyekye não explicar como pode ser exercitada a vontade moral. Para nós a vontade só pode ser treinada com garantia através do método de habituação no contexto de um sistema educacional. A educação tem o papel fundamental de incultar nos homens o princípio de boa-vontade. Não apenas a educação moral e cívica, mas também a educação democrática, conscientizadora e, portanto, transformadora, pode contribuir positivamente para erradicar ou minimizar o espírito corrupto. É o que explicamos a seguir.

Educação, Política e Desenvolvimento

Rousseau (1999) defende que todos os homens nascem livres e iguais perante a lei. Embora admita as diferenças naturais entre os homens, uma vez vivendo em sociedade, têm igualdade de oportunidades, tem direito à vida e à propriedade privada. John Rawls veio reforçar a ideia de igualdade social entre os homens. Para Rawls a justiça consiste na Equidade, isto é, na igualdade de oportunidades e, as instituições do Estado devem garantir que todos os cidadãos tenham igual nível de oportunidades, cuidados e atendimentos. Ele parte da ideia de que os sujeitos estabelecem uma forma de cooperação em sociedade: escolhem em conjunto, num acto comum, os princípios que devem orientar a atribuição de direitos e deveres básicos e a divisão dos benefícios da vida em sociedade. Decidem antecipadamente do modo como vão resolver as exigências que formulam mutuamente e qual vai ser a carta fundamental da sociedade (RAWLS, 2013:84).

A justiça como equidade fundamenta-se em todos princípios: 1) Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais extenso de liberdades básicas que seja compatível com um sistema de liberdades idêntico para as outras; 2) as desigualdades económicas e sociais devem ser distribuídas para que simultaneamente: a) se possa razoavelmente esperar que elas sejam um benefício para todos; b) decorram de posições e funções as quais todos têm acesso (Ibid. 67).

Entretanto, a finalidade do Estado é o bem comum (Aristóteles), não o bem para alguns homens que exercem uma função no Estado. Deste modo, não se justifica que alguns funcionários se considerem “os privilegiados” em detrimento do povo, nem que se sintam herdeiros da riqueza e do património do Estado. Portanto, a corrupção política que gera as desigualdades entre homens, desde as de oportunidades até as desigualdades económicas e sociais, vê-se injustificada nas sociedades africanas. Não podemos aceitar que funcionários corruptos prevaleçam na função pública, nem que o sistema governamental seja corrompido.

Mas não basta não aceitarmos este fenómeno, medidas concretas deverão ser tomadas. Não seremos como Gyekye que defende a erradicação deste fenómeno a partir de uma revolução inconsciente que resultará de uma lenta e progressiva procura de mudança nas circunstâncias económicas, nem aceitaremos que a revolução moral consistirá simplesmente no exercício da vontade moral. Para nós, a educação tem algo a dizer e fazer para resolver os problemas da sociedade, inclusive o da corrupção política. A educação desempenha um papel importante para a manutenção e reforma da sociedade. Desempenha o papel de manutenção quando ela é bem ordenada, justa e pacífica; enquanto que desempenha o papel reformador quando nessa sociedade alguns aspectos já não respondem às aspirações dos homens que a constituem e devem ser reformados ou inovados. Nas sociedades africanas onde verificamos muita crise da ética política, a educação é mais uma vez chamada a responder às preocupações que os seus membros apresentam, neste caso particular, a corrupção.

Segundo Brazão Mazula a educação tem o desafio de formar e educar a juventude com uma mentalidade e um modo de vida fundamentados na justiça e na equidade. A educação tem o desafio de educar para uma ética do futuro com o objectivo de alcançar aquilo que John Rawls chamou de sociedade bem-ordenada, isto é, sociedade democrática, caracterizada pela liberdade responsável dos seus cidadãos, pelo trabalho árduo que cria riqueza e a distribui de uma forma justa, ou seja equitativa. Para ele é possível criar a riqueza desejada sem corrupção e é possível uma sociedade eticamente bem-ordenada (MAZULA, 2008: 14). Mas, apoiando-se em Edgar Morin, pensa a ética numa perspectiva singular da auto-ética. O fundamento da auto-ética seria a liberdade de pensamento e pessoal. Estas liberdades são qualidades essenciais do homem, entendido como sujeito pensante e livre, capaz de falar, agir e auto-determinar-se. Mas esse sujeito só se legitima como tal em relação com outro sujeito e quando ambos estão inseridos numa comunidade ou sociedade humana. E a questão ética nasce desta relação societal e comunicativa. (Idem).

Ngoenha veio reforçar a ideia de Mazula. Para ele, o desenvolvimento que se almeja deve estar ligado a formação do homem. A educação tem o papel de formar o homem nas suas múltiplas dimensões, sobretudo, no saber ser, no saber fazer e no saber estar com os outros. Saber ser refere-se à autonomia do sujeito, a sua capacidade de tomar decisões responsáveis. O saber fazer relaciona-se ao conhecimento do nosso habitat, das nossas potencialidades individuais, colectivas e sociais, mas também com um sistema escolar, que, sem renunciar a sua vocação cultural, não se desconecte do mundo do trabalho; uma escola que prepare os alunos para vida por meio do ensino diversificado, interagindo com as potencialidades de cada região; deve ser uma escola democrática, isto é, que ensine o indivíduo a dar a sua contribuição ao país (NGOENHA, 2014:210).

Para nós é necessária a introdução e implementação de uma educação não apenas moral e cívica mas também democrática, conscientizadora e transformadora. Esta introdução e implementação deverá ser em todos os níveis, do primário ao universitário. Por educação moral refere-se à educação dos valores (axiologia) que consideramos aceitáveis dentro da nossa sociedade. Será uma educação cívica na medida em que educa os membros da sociedade para o exercício pleno da cidadania, sabendo conscientemente quais são os seus direitos e deveres. Como se não bastasse, será uma educação democrática na medida em que possibilite ao homem a discussão corajosa de sua problemática. De sua inserção nesta problemática. Que o advertisse dos perigos de seu tempo, para que, consciente deles, ganhasse a força e a coragem de lutar, ao invés de ser levado e arrastado à perdição do seu “eu”, submetido às prescrições alheias. Educação que o colocasse em diálogo constante com o outro. Que o predispusesse a constantes revisões. À análise crítica de seus problemas. A uma certa rebeldia, no sentido mais humano da expressão (FREIRE, 1967: 87-94).

 Paulo Freire defende que o papel da escola deve ser o de transformadora e não o de reprodutora. A escola deve devotar-se no ensino da leitura critica não só dos textos mas também da sociedade. É preciso ler o mundo, mas sobretudo, escrever e reescrever o mundo, isto é, transformá-lo (FREIRE, 1995: s/p). Uma educação cujos conteúdos reflectissem os problemas histórico-sociais em que vivem os povos. Que conscientizasse os povos desses problemas e que os possibilitasse a problematização prática desses conteúdos, isto é, que conjugasse a reflexão e a acção (práxis).

A educação democrática e transformadora possibilitaria com que os africanos não permitissem actos de injustiça cometidos pelos funcionários públicos. Torná-los-ia críticos e rebeldes (no sentido positivo do termo) diante de actos de corrupção política ou de quaisquer actos que pusessem em causa os valores da sociedade em que se inserem, aos seus direitos e deveres. Pois que, um dos grandes problemas da corrupção política em África, particularmente em Moçambique, é aquilo a que acima chamamos de ausência do espirito de cidadania e a falta de atitude crítica face às injustiças cometidas pelos funcionários do Estado. A ausência de espírito de cidadania torna os africanos passivos, queixosos-silenciosos e objectos sofredores de todos os males políticos.

Para nós, o exercício da moral ou a educação não pode ser feito pura e simplesmente através do hábito natural como afirmou Rousseau[12], mas do hábito como um método da educação formal. Seremos um pouco pragmatistas, seguindo a linha de Vico: só podemos aprender algo fazendo ou que já tenhamos feito, ou ainda, que saibamos o modo de fazer. A escola será o centro onde a moral se pratica e a ética se discute. Com isso, queremos concluir que o problema da corrupção política é um problema moral, e o problema moral é um problema de falta de vontade moral. Mas uma vontade não forçada é esculpida através do hábito, um hábito consciente. Por sua vez, o hábito só pode ser impulsionado pela educação.

Nós acreditamos que, a erradicação da corrupção e, portanto o desenvolvimento de África, passa pela aposta numa educação cívica, moral, democrática e transformadora, porque a corrupção antes de mais nada é um problema humano. Ela está intrinsecamente ligada à natureza egoísta[13] do homem que o leva a praticar a imoralidade. Mas felizmente o espírito humano pode ser moldado através da educação. Sem a aposta neste tipo de educação, os estados africanos ver-se-ão numa batalha sem fim e numa penúria apocalíptica.

 

Bibliografia

Abbagnano, Nicola. História da Filosofia. Vol 1. 7ª ed. Lisboa, Editorial Presenca, 2006.

Ayittey, George (2011). War on African Dictatorships”, Ethiophian Review.  http://www.sorac.net/site/2002/11/sorac-2002-keynote-speakers-ali-mazrui-george-ayittey, capturado em 04/05/2014.

_________________. “Defeating Dictators.” Speech given at the Oslo Freedom Forum, 2012. Site ”.  http://www.ethiopianreview.com/content/33222 capturado em 04/05/2014

AllAfrica.com.“Africa: Corruption Hampers MDGs -Transparency International” http://allafrica.com/stories/201010271133.html. Capturado em 16 de Julho de 2012.

Oyedoyin, Tunde, “James Ibori in final fall, “The Guardian. site WWW. URL http://odili.net/news/source/2012/apr/18/30.html. Capturado em 8 de Novembro de 2013

Fórum Político – Artigo “Corruption and Development in Africa” GCA/PF/N. 6/6/2014.

Freire, Paulo. Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967.

Gadotti et al. Pedagogia: Diálogo e Conflito. 4ª Edição. São Paulo, Cortez, 1995.

Gyekye, Kwame; “Tradition and Modernity” Philosophical Reflections on the African Experience/Kwame Gyekye. New York, Oxford University Press, 1997. __________________“An Essay on African Philosophical Thought”: The Akan Conceptual Scheme. Philadelphia, Temple University Press, 1995.

Khan, M. H., 1996. “A Typology of Corrupt Transactions in Developing Countries” IDS Boletim.

MAzula, Brazão. Ética, Educação e Criação da Riqueza: Uma reflexão epistemológica. Maputo, Texto Editores, 2008.

Mbiti, John S. “African Religions and Philosophy”; 2ª ed. U K, Heinemann, 1990.

Mondin, Baptista. Curso de Filosofia. Vol. II. 4ª ed. São Paulo, Paulinas, 1981.

Ngoenha, Severino Elias. Intercultura, Alternativa à Governação Biopolítica? Maputo, Publifix, 2014.

Nyerere, Julius. Good Governance in Africa. https://www.marxists.org/.../africa/nyerere/1998 capturado 13/08/2014.

Prata, Ana et al. Dicionário Jurídico: Direito Penal e Direito Processual Penal. Vol. II. 2ª ed. Lisboa, Almedina, 2008.

Rawls, John. Uma Teoria da Justiça. 3ª ed. Lisboa, Editorial Presença, 2013.

Rousseau, J.J. O Contrato Social. 4ª ed. s/c. Publicações Europa-América. Lda., 1999.

Rousseau, J.J. Emílio ou Da Educação. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil S.A, 1992.



[1] Incluímos também os países da África do Norte (Argélia, Egipto, Líbia, Marrocos, sudão e Tunísia).

[2] Consulte AllAfrica.com, artigo intitulado “Africa: Corruption Hampers MDGs – Transparency International. Buscado no dia 06 de Agosto 2014 do site WWW. URL http://allafrica.com/stories/201010271133.html.

[3] Consulte Tunde Oyedoyin, “James Ibori in final fall, “ The Guardian. buscado em 6 de Junho de 2014 do site WWW. URL http://odili.net/news/source/2012/apr/18/30.html.

[4]KHAN, M. H., 1996. “A Typology of Corrupt Transactions in Developing Countries” IDS Boletim.

 

[5]OWOYE, Oluwole e BISSESSAR, Nicole. Bad Governance and Corruption in Africa: Symptoms of Leardership and Institutional Failure. [online] disponível na internet via www.ameppa.org./Bad%20Governance.pdf  Disponível 29/07/2014

[6] Expressão usada em Moçambique para referir aqueles que cortejam, defendem e limpam a sujidade de uma pessoa que pode influenciar na sua promoção no emprego ou a qualquer posição superior a que está no momento.

[7] Vem do nome de Nicolau Maquiavel (1469), filósofo da época do Renascimento, segundo o qual não importa o que o governante faça em seu benefício, desde que seja para manter-se no poder.

[8] www.verdade.com.mz/africa/3643 -obama-pede-respeito-a-democracia-e-fim-da-corrupcao-em-Africa. capturado em 09 de Setembro de 2014.

[9] NYERERE, Julius. Good Governance in Africa. Site WWW. URL https://www.marxists.org/.../africa/nyerere/1998 capturado 13/08/2014.

[10]KHAN, M. H., 1996. “A Typology of Corrupt Transactions in Developing Countries” IDS Boletim.

[11] MBITI, John S. “African Religions and Philosophy”; 2ª ed. U K, Heinemann, 1990.

 

[12] A educação da natureza deve se basear no hábito, e o hábito não pode ser forçado, ele deve ser conforme a natureza. O hábito é desenvolvido naturalmente a partir da experiência sensível, todavia esse hábito não deve ser entendido como mera repetição dos mesmas experiências mas como um método de aprendizagem que consiste em repetir experienciando algumas vezes uma determinada coisa para a apreender (ROUSSEAU,1992: 43).

[13] Não no sentido de Hobbes, mas no do instinto de autoconservação e auto-estima que, embora seja bom, pode ser exagerado por aqueles que não são eticamente moderados.